terça-feira, 27 de julho de 2021

Na Hora da Nossa Morte

 

José Augusto Nozes Pires

NA  HORA  DA NOSSA  MORTE

 



Diário de Marta

   9.02

Desci aos abismos da dor. Creio na continuação da vida depois da morte. Da tua vida, querida, saudosa filha do meu coração.Não é justo que te perca para sempre.Não há sempre, não há nunca.Não é a coragem que me falta, é a esperança.

 

Diário de Carlos

   9.02

Nessa zona do rio a ligação entre as margens faz-se ainda por barco (o barqueiro é o mesmo desde a juventude do meu pai). O meu progresso é isto: o projeto de uma ponte. O meu projeto. Ponho-me com ele à prova como arquiteto. Há dezena e meia de anos a projetar vivendas de classe média, posso dizer agora: com este projeto não trabalho para uma classe social, mas para a humanidade.É isso o progresso.

 

 

Diário do professor
 10.02.

  Na hora da minha morte que a morte chegue sem aviso.O conhecimento do que se segue à morte é o único conhecimento pelo qual não nutro curiosidade nenhuma. Basta-me saber que é inevitável e adio o mais que posso o seu triunfo. Depois de surgir não quer a vida outra coisa mais que sobreviver.Uma boa parte das nossas escolhas é ela que as fez.Crê-se que as coisas sucedem desta ou daquela maneira porque assim as decidimos por livre escolha, mas o livre arbítrio é um mito. Reconheço que uma vida singular pode conter outras vidas possíveis.Outras formas de ser. Uma rede, somos um mapa de caminhos. Qual o mais vantajoso? Escolhe-se por cálculo o menos mau, ou simplesmente o mais desejado? De quantos acontecimentos imprevistos se faz uma vida? Cada um de nós é o epicentro de múltiplas variáveis. Com limites, é claro, com muitos limites: os filhos de indígenas da Austrália ou da Colômbia não costumam vislumbrar outros destinos senão os dos seus progenitores...

Gritamos: isto é meu! Esta é a nossa terra!, mas nem é meu, nem de ninguém. Um dia, na doença ou numa iluminação, olhamos e constatamos que pouco ou nada nos pertence. Invadimos, matamos, somos mortos. Uma ideia, uma propriedade.

 Não queremos que os nossos filhos morram antes de nós. Mas nem isto nos distingue de muitos outros animais. Somente mais intenso, mais duradoiro.Viver é um risco. Até o ato de comer é uma luta contra a morte.  

 Este ser, esta substância, sou eu, eis a minha identidade! Na verdade, somos hoje o que não fomos ontem. Conservamos e mudamos.Sempre assim foi: conservar e repetir, transformar e diferenciar.

Temos em nós mesmos um só e outro diferente. Tal como na geologia as camadas de baixo são as mais antigas. As origens, não o percurso.No fim regressamos ao início. Somos memórias.Toda biografia pelo próprio é falsa.
.........

~Caminhei bem mais de trinta quilómetros, sessenta e cinco anos decorridos, a memória exagera ou minimiza, então, sobretudo, quando somos petizes os percursos parecem-nos intermináveis, na verdade com toda a certeza aquela viagem a pé por montes e vales desde a pequena aldeia portuguesa para o outro lado, a Galiza, tornou-se marcante, o meu pai e eu, só nós dois, a pisar o restolho, a esfolar os sapatos nas lascas aguçadas do granito transmontano, não houve queixumes, a força que eu tomava como hercúlea do meu pai e a energia do meu corpo juvenil, a bater nos arbustos com uma giesta em flor, agora é sempre a descer, incitava-me com a sua voz severa para outros, amistosa para mim, agora sempre a subir!  Nunca te contei esta aventura, tantas foram as que não sabes, falávamos de tudo e ficou o mais íntimo por contar, fragmentos de uma vida, da nossa formação, tu contaste-me mais de ti do que eu, de repente a propósito ou sem propósito, relatavas um episódio da tua infância pois desse período da tua vida tinhas um particular gosto em contar episódios.
Se nos recordássemos de todos os dias, dias e horas e noites sonâmbulas, vigilantes, o filme das nossas vidas apresentava-se inteiro e contínuo, como se bastasse pressionar um telecomando e, mesmo assim, continuaria a ser uma história ficcionada. No meu caso esqueci uma boa parte da minha vida. Não apenas o que não me convém lembrar, mas o que me convinha de todo.
Recordo essa viagem de não sei quantas horas, apertado pelo aguilhão da fome, entrámos na Galiza e desembocámos na rua principal da vila, para comprar um par de calças, é verdade, o meu pai ia oferecer-me o meu primeiro par de calças compridas, usávamos sempre calções, fosse verão ou inverno, quando éramos garotinhos, com uma abertura na juntura das nádegas, acredita, é quase do teu tempo, mas tu vivias na grande cidade, ou muito provavelmente não recordas, és mais nova, digo: eras mais nova; pois, foi exactamente isso, umas calças cinzentas, o meu pai só me perguntou «Gostas?» sem que parecesse decidir-se por outras se a minha opinião fosse contrária. Bom homem, bom pai, mas decidido. Exibi-me com o par de calças novas, as primeiras, já o disse, de fazenda, não se conheciam as calças de ganga, no cinema da cidade, todo pinoca, disfarçado de rapaz crescido, o mais sério semblante a condizer, com os meus sete anos a brilhar ingénuos nuns olhos castanhos, a devorar o primeiro filme, a história de «Pinóquio», na versão genial de Walt Disney, e a sair para a rua com o coração a bater forte, a cabeça cheia de fantasias.Entendendo daquela moralidade conservadora que devia acautelar-me com os vigaristas e as feiras. Aqueles que nos utilizam para os seus fins egoístas e os lugares da diversão. O mundo que vim a descobrir funciona precisamente com estes dois eixos.
 (Quando me conheceste o que viste em mim? Já mo disseste, mas não me lembro.)

 

Diário de Carlos

10.02.

 

Quando a tua doença se declarou, quando todas as tentativas de cura se esgotavam, uma após outra, os teus cabelos a embranquecerem da noite para o dia, e depois a caírem em farrapos, tu encaraste a morte nos olhos e eu encarei a minha vida, passada e futura, com uma infinita tristeza. Não fui capaz de um único pensamento positivo. Durante a tua doença terminal e durante estes dois anos da tua ausência absoluta, nenhuma esperança, nenhuma alegria me visitou. Quase catorze anos de vida em comum tornaram-nos cúmplices, tão próximos e às vezes tão previsíveis e semelhantes, que todas as minhas fugas hão de ter aí a sua explicação. E as tuas.
Estou aqui, à tua beira. Vejo-te definhar cada dia que passa, em cada visita diária. Abandono o trabalho a meio. Vale-me a antiguidade, que é um posto, e uma equipa solidária. Nos primeiros tempos da eclosão da tua doença choravas muito, comigo e sem mim, vulnerável, impotente para admitires o irremediável, por vezes a esperança nascia no teu ânimo como um clarão, um dia de sol, retomavas os teus projetos com uma vontade que me contagiava, cheguei a convencer-me de que a cura era possível, ter pensamentos positivos, esperança, dizem, cura mais do que os químicos, mas não, contigo não foi possível o milagre da mente.
Estou aqui e observo as pálpebras cerradas dos teus olhos que já foram bonitos, brilhantes, castanhos. Já foram quentes, iluminados pela tua inteligência arguta. Governavas a galeria de artes sem que o Bártolo conseguisse acompanhar a velocidade do teu raciocínio, dos teus argumentos a favor ou contra este ou aquele artista, esta ou aquela obra. Ele entrava com o capital, tu com a tua sagacidade. Gorducho, com rosto de bebé, mas fino e calculista, o Bártolo. Também foi teu amante? Duvido, não correspondia ao teu padrão: jovens artistas de grandes cabeleiras, com óculos ou sem eles, com cachecol a cobrir o sarro dos pescoços, pêlos mal escanhoados nas faces magras, muito talento ou talento nenhum…Um completo contraste com a minha pessoa e com o conforto da tua (nossa?) casa, os talheres de prata, as colchas de linho, os tapetes persas, as porcelanas e os cristais, os aromas raros...
O Gonçalves ao telefone,” Quando é que começamos a pôrra da ponte?”. Um dia destes. Trago-a na cabeça toda acabadinha, mas não sai para o computador, os cálculos estão prontos. Falta a maqueta, pôrra! pois, okey, está toda na cabeça, falta pouco. Pouco?? Achas pouco??
A palavra «merda» perfila-se prontinha para ser largada. Este gajo tem razão mas não deixa de ser o que é: um chatarrão. Tudo pronto, a horas, é o prestígio da empresa, é o Tribunal de Contas, é o caraças. Tem razão o tipo. A ponte está prontinha, é só sair cá para fora, como Vénus do Oceano. Elegante como Vénus, apetecível como Vénus, provocante, desejosa de ser atravessada, penetrada, com os seus dois arcos inovadores, duas espirais, aparentemente frágil mas bem segura, ao mesmo tempo aberta e fechada, transparente e enigmática. As outras pontes que ajudei a desenhar ficarão no olvido, ultrapassadas por este projecto de uma vida, da minha, talvez eu morra, desapareça, perdurará como um testamento. Se o Gonçalves entretanto não correr comigo. A minha cabeça não consegue produzir outros projectos senão este. Cheia deste, vazia para tudo o mais. Vazia e cheia.

Diário de Marta

10.02.

 

O cheiro da doença e da morte enjoa, como o aroma fétido de um mar morto, veneno insidioso que me invade nestas noites na Urgência, Gisela não anda aqui, Gisela não pode andar aqui, as crianças dormem, ou choram, noutra sala, Gisela esteve lá, não está mais, não quero deixar-me prender pelas algemas da memória. O turno nunca mais chega ao fim, os velhos chamam a toda a hora, cheiram mal e queixam-se de tudo, chegam à beira da morte, trazem o odor da morte, acabam aqui ou noutro lado, resmungam, tossem, tossem de propósito, são poucos os que arfam como leões solitários, muitos os que gemem com crianças. Quando pela manhã regressar a casa, Gisela não estará à minha espera, tem – porque disse tem?-, de ir para a creche, às vezes não a levo, não a levava, saía do turno, ficávamos as duas aconchegadas na cama, a empregada doméstica é que a fazia levantar, a contragosto, ‘Vamos menina! Até lhe faz mal tanta cama! Deixe a mamã descansar, vá!’
Não tenho sono, no tempo da Gisela andava sempre cheia de sono, agora que precisava de dormir, não durmo, dormir dois, três dias, sem parar, reabrir os olhos e escutar a minha filha na sala a fazer traquinices, a meter-se com a empregada, ‘Menina, então? Deixe a Ermelinda trabalhar!’
Não quero pensar nisso, mas penso, o meu corpo pensa, a sua mente não quer, cerro os olhos, mal recostada numa cadeira dura pintada de branco não durmo um minuto sequer, deixo-me vaguear, evitando fixar-me em imagens dolorosas. Os turnos são intermináveis, um espaço e um tempo de tortura, quando batem à porta «Doutora, mais um!», levanto-me mecanicamente, observo o paciente, dou as ordens corretas, examino, prescrevo, mas sem vontade própria, como se andasse e agisse por instinto, esqueço os nomes deles mal partem, escuto as queixas, mas evito as respostas, não me aproximo, aproximar-me é envolver-me demasiado. Do corredor, atravancado de camas, vem um choro quase murmurado, sei de quem é, não atenderei, o que eu tinha de cumprir, já cumpri, não quero que aqueles olhos sofridos a clamar por socorro me acompanhem quando eu regressar a casa, não quero que a morte tenha um rosto.
Pela manhã executo os procedimentos habituais para entregar a vez ao colega que entra ao serviço, coloco o casaco sobre os ombros, não me despeço de ninguém, ouço vagamente despedirem-se de mim, conheço o afeto sincero, aconchego mais a mim o casaco na manhã fria, dirijo-me ao automóvel e parto.
Não encontro a empregada em casa, é claro, despedi-a há um mês, não a queria ouvir constantemente a falar na Gisela. Menti, disse-lhe que ia mudar-me para casa dos meus pais durante algum tempo, depois chamá-la-ia, paguei-lhe mais que o acordado. Agora não tenho ninguém em casa nos dois dias por semana em que a Maria vinha. Um apartamento vazio é como uma cova. Estendo-me no sofá, já não é o mesmo do tempo em que tinha uma família normal, marido, uma filha, levei tempos infindos a decidir-me permanecer naquela casa, mas como era bem perto do hospital, acabei por resolver-me a remodelá-la, consegui que uma empresa me ficasse com quase tudo em troca de mobílias novas. Tento adormecer, pensar em coisas bonitas, não consigo.
O telemóvel acordou-me, atendi enquanto olhava para as horas. Dormira sete horas, uma ligeira sensação de fome lembrava-me que não comia uma refeição quente há doze horas pelo menos. «Sim, como é que está, mãe? Diga!». Escutei o discurso incessante dela a admoestar-me por não me alimentar suficientemente, “Assim, a trabalhar tanto e sem comer, que almoçaste? nada, claro, não tinhas nada no frigorífico? Não sabias fornecer-te? Queres uma pizza que eu encomendo? Olha, vem jantar cá, vem!”
Um duche frio para apagar o sonho que o telefonema interrompera. A Gisela na caminha dela a chamar por mim com um sorriso e a boneca preferida na mão… o peito manchado de sangue…

 

 

 

 

 

 

Diário de Carlos

15.02.


Sinto um mau cheiro, a atmosfera está carregada de maus cheiros. As cidades apodrecem, este país apodrece. De tanto adiado apodrece. Na indefinição, na indiferença, na estupidez. Cupidez. Pobreza. Avanço e paro, neste trânsito caótico, avanço e paro. Sou um país que avança, faz que avança, e para. Disfarça-se de rico, desenvolvido, europeu. Sempre adiado. E é o sacana do Gonçalves que não me larga o telemóvel, «O projeto? Quando é que o trazes? Pôrra!». Vai-te lixar, Gonçalves. A minha ponte não se fará às três pancadas. Quero uma ponte tão alvacenta ao sol que irradie a luz como uma tela impressionista, que à noite se ilumine de mil estrelas. Uma ponte com pés de granito, braços de mármores, cabeça de aço, olhos de luz. Quero uma ponte com um jardim suspenso, como na Babilónia. Canteiros com flores de ambos os lados. Com sonoridades: a música de Bruckner para quem entra, a de Verdi para quem sai. Não quero apenas pedra e aço: quero madeira, arcos de madeira de carvalho. Uma mistura sábia de passado e de futuro. Tenho tudo na cabeça.
Projectar uma ponte em tempos de miséria e revolta. Enquanto a imagino e desenho, um tremor de terra parece abalar este país. Políticos sem visão, com a visão que os países poderosos lhes impõem, mas espertos bastante para se fazerem eleger. Um dia esgotarão a paciência deste povo cortados em dois: os ignaros e os outros. Não pertenço às elites mas não estou mal de todo. Pouco tempo dediquei a observar a miséria social, e ela estava ali, à saída do prédio de escritórios onde trabalho, nos bairros que percorro até casa, nas ruelas que frequento à noite a pé. Vejo-a agora. É brutal e feia. As multidões acotovelam-se como se tivessem um destino. Mas não têm. Ninguém tem aqui, neste pedaço do mundo, um emprego vitalício. Houve um tempo em que os desempregados eram poucos e os empregados precários eram muitos. Hoje, os desempregados acumulam-se nas praças,vagueiam nos passeios. A pobreza é tanta que já perdeu a vergonha. Os antigos funcionários de fato e gravata são agora indigentes. Os operários de fato de macaco são agora pedintes. As lojas encerram as portas. Aqui e ali sobram ainda algumas, com uma empregada em pé atrás do balcão, a olhar para um telemóvel apagado.
As notícias são aterradoras, os esforços do Governo para acalmar são infrutíferos, a propaganda já não resulta, a realidade está nas ruas e nos ecrãs, virtual e real identificam-se, para os jornalistas as más notícias são as boas notícias. Por mais que alguns disfarcem, a soldo do governo, o alarme está instalado, os milionários temem pelas suas fortunas, antes queriam Estado mínimo, agora exigem Estado máximo. Os muito pobres são milhões, os quase-pobres são incontáveis. A ameaça do caos e da anarquia é uma realidade, as oposições confrontam-se. Revoltas surdas ontem, revoltas ruidosas atualmente, manifestações públicas constantes, greves maciças. As fábricas produzem mas as encomendas não se escoam, as dívidas acumulam-se, os bancos não emprestam.
E quer o Gonçalves a ponte com urgência...antes que o caos o afogue. A fé dele é que o governo cumpra com as soluções que apregoa para amansar a crise: obras públicas. A verdade é que anda a pedinchar os dinheiros aos abutres. Até para uma ponte de modestas dimensões. Candidata-se a todos os programas subsidiados. Porém, na Europa tudo vai mal. A crise mais violenta e inesperada instalou-se definitivamente. As notícias do dia são cada vez mais inquietantes: atentados terroristas que amanhã chegarão aqui inevitavelmente. Atentados sem assinatura, o terrorismo é já interior, europeu, irrompe nas potências do Ocidente, nas praças-fortes do capital. Que forças estão por detrás não se sabe, provavelmente as polícias, os militares, os grupos da extrema-direita. Não se sabe. Há tempos idos eram visivelmente de islamitas radicais, hoje em dia misturam-se e confundem-se com nazis.
Ontem, em Lisboa, vi como o lixo se amontoa. Os trabalhadores estão em greve há uma semana, e parece que têm carradas de razão. Os transportes públicos, que são uma merda, também, ora sim, ora não. Gatos vadios atacam o lixo e espalham-no pelos passeios, logo enxotados por seres humanos que fazem o mesmo.  Ao cair da noite competem ferozmente,todos os famélicos e desvalidos, de faces lívidas e buracos negros nos olhos, monstros de um filme de zombies.
Sim, o sacana do Gonçalves tem razão: é preciso construir a ponte quando antes, que isto está para explodir. Não acredito em paraísos, muito menos naqueles que brotam das ruínas de uma sociedade devastada pela fome, pelo terror. Contudo, a minha ponte é uma utopia. É assim mesmo que eu a quero. Que digam dela que é um sinal de esperança, que, para mim, é um sinal da vontade teimosa que tenho de sobreviver.Da Vontade, porque é ela que cria.

 Altifalantes difundirão permanentemente óperas e sinfonias, palhaços e acrobatas entusiasmarão as crianças que a atravessarem nas bicicletas e nas trotinetas. Largos passeios permitirão que se passe a pé, para se desfrutar do obra e da paisagem.
Sim, é preciso que a ponte se eleve, alvacenta e azul, como a pele e os olhos de uma bela mulher. Com os seus braços sensuais, as suas coxas sedosas, o seu ventre ondulado...A minha ponte é a utopia, e a utopia disfarça-se sempre de mulher.
Depois dela que venha o dilúvio. Ela permanecerá.Sobre as águas que subirão para eliminar do mapa as cidades orgulhosas, ou debaixo delas.

Diário de Marta

15.02.

NARRADOR: Marta (cujo apelido omito por razões óbvias) é média de medicina interna e familiar num hospital público de uma cidade não muito longe de Lisboa.Pediu para ser deslocada para essa capital de um Concelho do Oeste quando a filha faleceu num desastre de automóvel pelo qual ela culpa o ex-marido. Marta era uma mulher voluntariosa, empenhada na defesa de causas humanistas e sociais, cheia de amor pela vida. Era, mas já não é. Há dois anos que sofre e perdeu o gosto por tudo. Uma depressão instalou-se nela , embora não a impeça de trabalhar.

Fui jantar a casa dos meus pais, acabei por aceitar o convite. Preferia estar sozinha, mas era insuportável atender as chamadas constantes do telemóvel e as desculpas já soavam a mentiras, odeio mentir, minha mãe também, mas a frontalidade dela era, ou é, diferente da minha, era incómoda, tutelar, invasora, inoportuna, chegava a ser opressiva, sem respeito, sem compreender a minha necessidade de isolamento.
Comemos peixe, obrigatório naquela casa. Mastigava com a boca seca pequenas tiras de peixe-espada, lembrando-me do apetite que sempre tivera noutros tempos, observando o cabelo pintado dela, recusa a idade que vai tendo, a boca rodeada de rugas abrindo-se e cerrando-se conforme falava e comia. Observava e temia que em qualquer momento a mãe voltasse a falar da Gisela, percebia nas reticências e insinuações a tentação, lançava-lhe um olhar fixo para a conter. A mãe no falar é desbocada, sempre fora, agora com a velhice acentuava o gosto e o vício, quando trabalhava fora de casa, era conhecida por esse pendor. Verdade se diga que não era de fofoquices e, por isso, tinha sempre amigas no trabalho, nas pequenas escolas onde leccionou dezenas de anos, os pais das crianças gostavam dela. Era a minha mãe, com os seus defeitos e as suas qualidades melhores que os defeitos. Porém, actualmente, não tenho paciência para ela, para o pai um pouco mais, é reservado, silencioso, discreto. Um casal com quarenta anos de vida comum completa-se, de outro modo não sobreviveria.

Não quero pensar na minha filha, tão pequena, tão mimosa, morta e enterrada, contudo ela está aqui, ao meu lado, provocando a avô com as suas traquinices, fingindo não querer comer para que ela lhe prometa o que lhe apetecer pedir por brincadeira, um jogo em que a idosa cai sempre na armadilha tecida por uma petiz.

Quando estou para terminar a sobremesa, que como com algum gosto, talvez precise de açúcares, tocam os primeiros acordes da Ode Triunfal no telemóvel. Atendo. É o Rogério, médico, meu colega no serviço, somos amigos mas ele parece desejar mais do que isso. Não possuo nada para lhe dar, nem desejo, nem sequer amizade ternurenta, mesmo os esforços que ele faz para me distrair maçam-me. Desistiu de me convidar para discotecas e outros locais ruidosos, ficou-se pelo convite para o cinema, ainda assim com uma condição prévia: que os filmes não tenham mortes. Regra difícil de respeitar nos filmes americanos. Evito histórias destas, no entanto nem sempre consigo, tão premente é o meu gosto pela leitura, até para me distrair, ocupar-me nas horas infindáveis que passo sozinha, isolada, com o gato ao colo e a caturra no poleiro.

Digo ao Rogério que me dói a cabeça, não estou capaz de sair para parte nenhuma, mas ele insiste, «a noite está esplêndida, um saltinho a Santa Cruz, ir e voltar!»... e a mãe que escuta a conversa e acena com a cabeça e murmura «diz que sim, diz que sim!».

Quinze minutos depois toca a campainha, entra, cumprimenta os meus pais com desenvoltura, traz a abundante cabeleira que já começa a clarear bem penteada, uma camisa de ganga que lhe fica bem, um sorriso radiante. No hospital não é galanteador para as enfermeiras, pelo menos à minha frente; porém, há qualquer coisa nele de sofisticado que o torna um pouco pedante, pouco natural. Ou simplesmente não me sinto disponível.

No seu automóvel caro, em Santa Cruz, estacionado a pouca distância da Havaneza, tenta beijar-me ao fim de meia hora de conversa. Recuso. Definitivamente estragou tudo. Definitivamente talvez nem tanto, mas fico de sobreaviso e estabeleço os limites. Nada disso me interessa. Com ele não, e não vejo que haja outro.

Estamos sentados num banco com o oceano em frente a rugir, atrás de nós a casa onde viveu João de Barros, o escritor que me deu a conhecer Homero quando era miúda; as escadarias na falésia, a praia, o oceano. Um dos pontos de Santa Cruz que mais frequento nas horas de evasão, quando a infelicidade é insuportável. Estou absorta, ele fala mas não oiço o que ele diz, apenas fixo o mar e escuto-o a desfazer-se em babugem sobre as areias. Subitamente um minúsculo ser aparece iluminado pelo luar, saltitando na espuma, recuando e avançando. Estremeço, a brisa torna-se gelada. Apetece-me descer a escadaria aos gritos «Gisela! Gisela!». O braço dele sobre os meus ombros, desperta-me. Gisela não está ali.Afasto-lhe o braço com nojo.

No regresso viemos silenciosos. O acto precipitado e algo vulgar dele despertou-me a lembrança desagradável do meu marido. Do meu ex, digo. Não sei por onde anda, e rezo para me cruzar com ele.Receio lançar o automóvel para cima dele. Convertê-lo num cadáver. Culpo-o pela morte da Gisela, e isso é um facto que não estou nada predisposta a alterar. Odeio-o e não lhe perdoo. Preferia que ele me fosse indiferente, mas tal seria libertá-lo da responsabilidade da tragédia que vitimou a nossa filha. A minha filha. Nunca foi dele: é estéril, levámos dois anos a concluir que a causa cabia-lhe a ele não a mim, um ano inteiro para o gajo se decidir a aceitar a inseminação artificial. Portanto, Gisela era mais minha que dele. E por causa dele, morreu.

 

NARRADOR: Carlos nasceu no seio de uma família burguesa. O pai, já falecido aquando destes diários, fora um rico empresário e legara-lhe em testamento uma luxuosa mansão - um palacete burguês do século XIX - em Mafra e um confortável apartamento em Lisboa. Os pais haviam-se divorciado e a mãe era uma mulher fútil, "socialite", que pouco se relacionava com o filho, ou melhor : o filho detestava-a mais do que detestava o pai, na verdade não detestava o pai porque, apesar deste ter sido uma grande admirador de Salazar e ter feito fortuna com as colónias, era afetuoso com o filho e dedicou todos os cuidados para que Carlos viesse a subir ainda mais que ele na alta classe social dominante. Carlos José formou-se em arquitetura e possui uma segunda formação em engenharia de pontes. 

Diário de Carlos

20.02.

Passam períodos longos de tempo que não penso na minha mãe. Penso em tantas coisas e não penso nela.Então, chega um dia, um instante, em que a sua lembrança invade-me como uma maré alta. Por um motivo qualquer. Talvez não, talvez haja qualquer associação. Por ventura uma falta mais que uma ausência? Uma falha na engrenagem dos dias? Quase nunca visito a campa. Os cemitérios trazem-me emoções muito fortes e ao mesmo tempo absurdas, porque não acredito que eles contenham mais que ossadas. Porquê então? Porque vejo com uma nitidez dolorosa o funeral da minha mãe. Esteve lá muita gente e ninguém comentava o suicídio. A mim pareceu-me isso. Há um respeito verdadeiro e profundo pelos suicidas. Não se ouvem gritos e choros como sucede nos funerais de crianças, um horror insuportável. Nem mesmo como em certos funerais de adultos muito amados. Baixa um silêncio terrivelmente incómodo. Antes do funeral sim, tenho a certeza que toda a gente se interrogava “porquê?” e comentariam que o divórcio fora quase um escândalo:um importante empresário como o meu pai num divórcio litigioso? Deu assunto até para tablóides.

DIÁRIO DE CARLOS

21.02.

   Fui jantar com a Carla. Devia dizer: levei-a a jantar? Como empregada era uma trabalhadora inteligente e responsável; como camarada atraía-me como pessoa na qual era desconhecida fosse o que fosse de hipocrisia e vaidade. Possuía uns olhos muito azuis e tal propriedade era música para os meus ouvidos...Um sorriso de Gioconda, o andar tímido (era mesmo tímida!), Carla apresentava aquela fragilidade dos juncos. Iria descobrir que dobram mas não quebram. Por detrás daquela mansidão que lhe era natural (nunca a via colérica), não havia submissão. Se fomos para o seu apartamento (minúsculo!), foi porque ela o quis. De resto, ela não bebe qualquer espécie de álcool. Se fomos para a cama foi porque ela me pediu para dançarmos ao som do cd que colocou, e ela saberá porque o escolheu, Prophesy, de Gilio Sawhney. Versos graves e quase tristes sobre um ritmo erótico. Desprendeu-se (porque não fiquei surpreendido?) soltou a sua natureza feminina, meneou as ancas estreitas, primeiro com alguma timidez, depois foi crescendo no espaço, libertou-se no tempo, a Carla, afinal, mostrava experiência de discotecas, e porque não havia de ser assim? Não olhava para mim quando ritmou os movimentos preliminares, depois olhava-me cada vez mais longa e fixamente, a Carla exibiu uma perfomance magnífica, um corpito fino e juvenil, as mamitas sem grande volume, aquele tipo de mulher-rapariguita que os homens não reparam, exceto quando olhada ao pé, porque são lindos e límpidos os seus olhos azuis, vistosa a sua abundante cabeleira de cores quentes, suave a sua fala. Dela se pode dizer que vai à fonte insegura mas formosa. Inseguro também eu.

  Durou dois anos.

Hoje penso nela assim: afinal um pequeno vulcão adormecido que despertou, a metáfora gasta serve muito bem. Penso nela e desisto dela. A diferença de idades não me permitia alimentar ilusões. Não posso permitir que a emoção me domine. É comum avaliar-se a mulher jovem como sendo muito ciumenta e, eu, se o não fui de início mais do que o habitual, tornar-me-ia logo que chegassem os sinais da maturidade que avança inexorável para a velhice. Antevia o sofrimento que iria sentir quando ela fosse cortejada por um rapaz da sua idade, um colega da universidade onde ela tenta obter o mestrado (trabalhava connosco em part-time). Inevitável. A Carla só pôde ser um episódio na minha vida, um anúncio apenas de fugaz felicidade, rejuvenescimento, breve porque breves são todas as ressurreições. Somente isto: um clarão na noite escura.Sempre o digo e repito porque é verdade: não sou propenso a paixões obsessivas, que são sempre modos de submissão, de masoquismo. É certo que senti uma vez ou outra-quem não as sentiu algumas vez?-, todavia nada de andar a perseguir alguém que decidiu desaparecer...Atrás de uma vem outra, mais tarde ou mais cedo. Como diz o povo masculino: mulheres há muitas!

Amanhã é sexta-feira, não vou trabalhar para o gabinete. Vou desenhar um Centro de Cultura para os filhos dos pobres. 

DIÁRIO DE MARTA

21.02.

Fiquei boquiaberta. A conversa com a Carla deixou-me perturbadíssima. A Carla é uma amiga minha, muito jovem, não é, talvez, ainda uma amiga, conhecia-a há muito pouco tempo, viajamos no mesmo autocarro para Lisboa, não gosto de conduzir, prefiro o transporte público, vou a Lisboa uma, duas vezes, quando calha, faço isso como uma fuga de mim própria e dos outros, desta cidade que cresce mas é pequena, onde proliferam os provincianos e os maledicentes, tudo se reduz a invejas, vou à capital espairecer, os bons espectáculos de teatro ou dança distraem-me, embora por vezes chore com os dramas quando me tocam nas feridas, no fracasso do meu casamento, na morte da Gisela. Da Carla sei que trabalha e estuda em Lisboa, é simpática e pareceu-me tímida, a diferença de idades em vez de nos afastar aproximou-nos, provavelmente uma simpatia e confiança à primeira vista daquelas que ninguém sabe explicar. Ontem fomos as duas assistir ao espectáculo de dança da Olga Roriz. Temos essa afinidade pela dança, bem assim como pelo teatro. Danço sozinha, ou dançava, em casa, quantas vezes! Com o meu ex-marido íamos dançar frequentemente. A Carla é mais freguesa das discotecas, naturalmente para uma jovem, do que eu. Teatro experimentei-o há muito tempo, todavia ficou-me esse «bichinho» que nunca mais nos abandona. Fomos então as duas deliciar-nos com essa «Nortada» estupenda da Olga, e ficámos na conversa depois num barzinho confortável. É certo que as mulheres apreciam falar, conversar, sobretudo, umas com as outras (nos homens acontecerá o mesmo, mas suspeito ainda assim que somos diferentes), e as conversas são como as cerejas que se tiram do cabaz, contou-me mais pormenores, fui eu que puxei o assunto talvez para evitar que a Gisela viesse à conversa, sobre a empresa onde trabalha em meio tempo, um escritório de arquitetos e engenheiros, é em arquitetura que ela está licenciada, desenham casas evidentemente, e pontes, etc. O administrador é um tal Vasconcelos, irritadiço e chato para os arquitectos subordinados, para ela nem tanto, anda sempre a pegar-se com um que se chama Carlos, um indivíduo do qual a Carla hesitou em falar. Denunciou uma tão curiosa hesitação, baixando os olhos quando o referiu, que me obrigou a perguntar mais sobre ele. Prendeu-se-lhe a língua e deixou no ar apenas uma vaga insinuação, entre o elogio e um estranho ressentimento, estranho nela, que me parecia isenta em relação a tais sentimentos…Não insisti. Mudou de assunto, algo constrangida, e passou a convidar-me a ir visitar uma galeria de arte, vai lá com o namorado para a semana, não sou tão apreciadora ou conhecedora de artes plásticas como ela julga que sou, mas aceitei, vi nela interesse em apresentar-me o parceiro (essa súbita mudança de tema, em que passou do tal Carlos para o namorado pareceu-me sintomática). Foi então que a conversa ganhou um rumo inesperado: disse que o namorado conhecia o dono da galeria, faz-lhe uns fretes para ganhar uns cobres porque também anda a terminar os estudos, o tipo da galeria chama-se Bártolo…E aí, a minha curiosidade acendeu-se: como é esse tipo? Descreveu-me um indivíduo mais baixo do que alto, quase calvo, o resto do cabelo cortado à escovinha, vestindo-se de maneira exótica, que tanto parecia gay como não. Subitamente, arregalei os olhos para ver melhor:aquele tipo conheço-o! Viu-o duas vezes com a minha mãe numa geladaria de Lisboa! Da segunda vez vi-os de mãos dadas. Assim mesmo. Nunca falei à minha mãe sobre isto, achei aquilo uma cena estúpida e ridícula, mas à Carla perguntei de rompante se sabia algo sobre a vida pessoal desse tal Bártolo, se era casado, gay, se tinha uma amante, ela não sabia ao certo, o namorado contara qualquer coisa sobre isso, dele ter uma amante, uma senhora casada que o visitava na galeria, contudo não sabia descrevê-la, ela nunca a vira.

Desta conversa restam-me uma incerteza e uma certeza: a primeira é que o tal Bártolo lhe fora apresentado pelo arquitecto Carlos, com quem ela tivera, seguramente, uma relação íntima; a segunda, é que a minha mãe, a própria, tem um amante! Incrível. E, todavia, nada mais verdadeiro. A minha mãe. Começava a compreender as saídas frequentes dela e os amuos do meu pai quando o encontrava sozinho no apartamento, fechado como um túmulo, com o copo de uísque na mão, o uísque que não largava há anos e que contribuiu e muito para a ruína do seu casamento.


DIÁRIO  DE CARLOS
2.03.

O teu funeral distinguiu-te como uma figura pública. Foste acompanhada por senhoras e senhores importantes das artes, da política, da alta sociedade. Nem uma operária, a mulher da portaria do prédio, estiveram lá. Eras uma mulher de sucesso nas elites mediáticas. O maior inútil ali presente terei sido eu, na opinião daquela gente. Tu não pintavas quadros, mas vendias. Não fotografavas, vendias mercadorias. Com que charme e persuasão! Em vinte anos fizeste uma carreira notável. Ignorei sempre o saldo da tua conta bancária, adivinhava que ela fosse choruda, bastava ver-te no regresso das tuas compras, apenas tuas, apenas para a tua pessoa, e a cabeleireira, as massagens, o clube, as tuas viagens. No velório não olhei para ti sequer uma vez, não por crueldade, mas por compaixão. Por mim talvez. Aquilo que vira em ti durante meses de agonia chegara para meu sofrimento. Descobriste com alguma surpresa o quanto sofri por ti. Chegaste a julgar que eu te amava muito, perguntaste, eu respondo que sim, mas menti. Não, não te amava, há anos que não te amava já. Nunca soube ao certo se as amantes que tive te provocaram o desamor que os teus amantes me provocaram a mim. Se o resultado fosse equivalente porque não me deixaste? Não precisavas de mim pela fortuna, eras tu que a acumulavas; nem pelas viagens, eras tu que as fazias e raramente comigo, nem pelos amigos, a maior parte eram teus, e os meus não te interessaram nunca, todos eles tinham defeitos para ti, frequentemente os mesmos: uns derrotados da vida (ultimamente era assim que os classificavas a quase todos). Gabavas os teus pintores, os teus fotógrafos, os teus críticos de arte, os teus professores universitários, os teus empresários. Esses sim, representavam o alvo da tua admiração e da tua cobiça, por aquilo que criavam uns, por aquilo que representavam, outros. Foste para a cama com quantos? Talvez não muitos. Às vezes, para me irritares, insinuavas que sim, com fulano e beltrano, mas sempre desconfiei que fosse treta. No fundo eras uma mulher frígida, ou quase, ou passaste a sê-lo. Sedutora, mas indiferente aos fogos da paixão. Por ventura eles julgavam-te fácil, ardente, mas enganaram-se. Eras um fogo para ser luz, não para aqueceres.
Não tenho saudades de ti, tenho e não tenho. Amei-te não te amei. Tu foste a floresta onde me perdi, o predador e eu a presa, eu o predador, tu a presa, tu foste as lágrimas e o riso, a alvorada e o anoitecer, o rumo e o rumor, a pegada na areia, os orgasmos ao espelho, as fantasias e os temores, o pequeno-almoço na cama, os piqueniques de burgueses, a torreira dos Algarves, os cabelos na almofada, os vómitos na sanita, os sonos despertos à tua cabeceira, a lividez da lua na tua face, os amantes que tiveste e não tiveste, a foice da morte.

DIÁRIO DE CARLOS
3.03.
Desci a montanha de faces lisas como um cone apontado ao céu. Pedregosa, as pedras rolando, os sapatos rompendo-se nos gumes acerados dos sílex espetados no solo. Escorreguei e caí de borco uns metros abaixo, na argila seca e dura, sem um caule de arbusto, sem uma flor silvestre que a alegrasse. A planície abria-se diante de mim, lívida sob uma lua de cemitério. Vasta, imensa, sem sinal de rio, lagoa ou mar, que trouxesse uma miragem ou uma brisa. Desértica, árida, silenciosa como um túmulo, nem um golpe de asa, um grasnido de animal feroz, o vulto de um roedor noctívago. O único espectro era eu, que não sabia o que fazia ali, que não sabia sequer que era eu. Somente uma sombra difusa que me identificava. Alguém em mim gritou. Nenhum eco se ouviu. Ao longe, muito ao longe, uma pequenina e diáfana luminosidade parecia que me chamava, guiando-me os passos. Mas aquilo que em mim sentia teve medo. Um antiquíssimo medo, vindo dos confins das florestas e das savanas. Aquilo que em mim era um corpo estava semi-curvado, equilibrando-se com dificuldade sobre os pés, as unhas grossas e encurvadas, totalmente coberto de pêlos, negros e hirsutos. Fez-se subitamente escuro, uma nuvem tapou a lua. Dei um passo, tacteei o solo, dei outro passo e mergulhei num poço. Tombei sobre algo mole que me aparou a queda. Mexeu-se. A lua reapareceu e vi. Vi um corpo semelhante ao meu. Olhava-me com uma espécie de contentamento nos olhos nebulosos. Uma mão mais fina que a minha procurou o meu ombro. Estremeci e despertei. A janela estava escancarada e a lua era pálida. Levei a mão ao copo de água à minha cabeceira e bebi-a de um trago. Estivera a sonhar. Estranho sonho que não se compunha manifestamente do presente, claro o seu significado latente, porém escapava-me o seu propósito. A propósito de que coisa, situação, emoção? Vejo-o como um regresso, retrocesso, num presente já passado, remotíssimo, em que eu – nós - não era ainda um eu, uma individualidade, apenas um corpo bruto em transição, sensitivo mas desprovido de sentimentos, matéria sem aquela outra de que se fazem os pensamentos.
Quem sou? Que faço aqui?
Meu amor que nunca vieste, nunca ficaste, nunca foste, quem sou?

DIÁRIO DE MARTA
3.03.
Não se pode circular, automóveis atravancados nas ruas, em cima dos passeios, montanhas de lixo, cães vadios chafurdando nos restos fétidos, mendigos famélicos disputando entre si e com os animais, como animais, abandono a avenida Humberto Delgado e desvio para a Henriques Nogueira, pior a emenda que o soneto, uma pequena manifestação de estudantes erguendo bandeirolas com símbolos que me pareceram dos movimentos anarquistas (que sei eu?) impede-me o avanço, deixo-me ir atrás contando os minutos, faço a rotunda e viro à esquerda, chego sem mais percalços ao grande parque da Várzea e fujo para fora da cidade. O mundo desabou, não há futuro, o presente é já passado.
Nem quero pensar nos amores fúteis da minha mãe, verdadeiramente ridículos, com aquela idade avançada, a disfarçar as brancas com o artifício do loiro, quando se maquilha é uma máscara, não assusta mas faz sorrir, a condescendência que se tem por uma velha gaiteira. Enfim, ainda não é tão velha como isso. E não estarei a ser preconceituosa? O amor não pede bilhete de identidade. Quando chega, chega. Mas é a minha mãe, pôssa! E o marido atraiçoado é o meu pai. Como será esse Bártolo? Dono de uma galeria de arte?? Isso enriquece alguém? O tipo oferece-lhe diamantes e rubis? Champanhe e caviar? Tenho que admitir que ela é culta, tem bom gosto e conhecimentos de história da arte, nas estantes não lhe faltam livros desses, sim, é verdade, a coisa atraiu-a, a sedução dele andará por aí, exposições, inaugurações, artistas, gente bem falante, sim, esse mundo agrada-lhe evidentemente. A cama vem a seguir. O costume.
Ontem, numa das rotundas da várzea, cruzei-me com um carro e a pessoa que o conduzia provocou-me aquela emoção que se sentiria se víssemos alguém do outro mundo. Não identifiquei aquele homem, mas reconheci-o. Vinha de tempos imemoriais, como se subisse do fundo do oceano, viesse à superfície, ficasse a flutuar entre as névoas da memória. Tinha o cabelo completamente grisalho, um rosto de homem maduro, traços fortes, um homem bonito. Não me viu, por isso faltou-me a certeza de um «clique», uma troca surpreendida e cúmplice de olhares. Passei a tarde a pensar nisso. Seguramente que o conheci em qualquer altura da minha vida, consegui vislumbrar uma fisionomia singular, mas donde? Donde o conheço? Finalmente à noite quando estava prestes a adormecer o nome surgiu-me como a legenda de uma fotografia: Carlos! Exactamente. Na fotografia é um rapaz de dezoito anos, cabelo e sobrancelhas negras, olhos castanhos que às vezes se enchiam de doçura, outras vezes perdidos no além, fundos com uma impenetrável melancolia, eu dizia-lhe: «Pareces andar sempre com saudades do futuro!». O Carlos. Meu amor primeiro dos dezasseis anos. Aqui. Bem perto de mim. Reaparecido como Dom Sebastião.
E fiquei a pensar naquela frase tão batida: não há amor como o primeiro.

DIÁRIO  DE  CARLOS
6.03.

Há dias cruzei-me com uma mulher dentro de um automóvel que me pareceu conhecer. Foi apenas um instantâneo, não me permitiu observar os pormenores, um ápice, um relance, um olhar de esguelha, mas uma luz intensa, um pequeno foco de luz que colocou na sombra tudo o mais: o presente factual e os pensamentos, um rosto na escuridão que, pouco a pouco, se transfigurou num rosto muito antigo, juvenil. Podia não ser ela, quantas vezes confundimos caras. Podia ser, mas creio que não. E creio cada vez mais. Foi há dias e a recordação que emergiu de um passado distante torna-se cada vez mais nítida. Sempre tive dificuldade em recordar nomes, mas este nunca esqueci: Marta! Se acaso foi ela. Era bem estranho que fosse. Há quase trinta anos que não a vejo. Não foi o primeiro amor, mas foi, talvez, o mais genuíno de todos que senti. Porventura aquele que mais nostalgia me deixou. Talvez porque não guarde dele, ao contrário de alguns outros amores, amargura, ressentimento. Talvez porque me ficasse sempre a impressão de que eu seria feliz se a relação continuasse. Talvez porque nunca fosse capaz de explicar a mim mesmo qual o motivo do seu termo. Ainda por cima, desfecho abrupto. Apenas porque sentimos, muito jovens, imperiosa necessidade de experimentarmos sucessivas novidades e encontros, e dissemo-lo um ao outro quase ao mesmo tempo. E rumámos cada um para o seu lado à procura. Preferi suspeitar que havia alguém próximo dela a fazer pressão, porém nunca quis confirmar, perguntar a outrem nunca, persegui-la? jamais. Nunca me inclinei para atitudes dessas. Até hoje, depois de ter casado, depois de ter enviuvado, depois de ter perdido a juventude, nunca pressionei ninguém. Resigno-me se sou eu o perdedor.
 Gostaria de ter a certeza que era ela. Não tenho qualquer interesse normalmente em águas passadas; neste caso, contudo, faria uma exceção. Aplica-se o ditado popular “Não há amor como o amor primeiro!”.Pois claro, tudo que se prova pela primeira vez ou é doce ou muito amargo.

Ontem fui visitar o meu antigo professor. O stôr Ramos, como é usual os estudantes abreviarem, não apreciava que lhe chamassem doutor, mas professor, explicava sempre no início dos anos escolares aos estudantes que doutores eram os médicos - "Doc",como na América-, ele era professor. E que professor! O ensino para ele era uma missão quase religiosa, e o ensino dele era uma quase constante novidade, por vezes, quando inspirado, um acontecimento. Nessas ocasiões merecia um auditório enorme, de voluntários, e não uma sala modesta de uma escola secundária de ouvintes obrigatórios.
Uma vez por outra visito-o na sua casa resguardada por um muro não muito alto, de pedras sem cimento ou reboco, construído por ele próprio, que em vez de afastar, atraía, pelo seu ar rústico e bravio. Um largo quintal nas traseiras e um espaço ajardinado na frente, ambos trabalhados a primor, fariam pensar a um passeante que havia ali um jardineiro profissional. A mim sempre me pareceu a vivenda de um inglês reformado, onde não faltava sequer uma estufa envidraçada. Sinto-me bem quando lá vou. Não sou dado a agriculturas, contudo ali sinto-me mais que confortável: há ali uma espécie de adoração pela Natureza, com maiúscula.
Não falamos quase nunca do passado, nem eu, nem ele, temos qualquer gosto nisso, ainda que o tempo passado com ele na escola, aluno e professor, tivesse sido dos mais intensos. Eu então ria facilmente, com uma naturalidade que já não tenho, adorava os desportos, mas tirava um grande prazer dos livros que lia, embora não fossem muitos, do sucessivo conhecimento que bebia com avidez, e até dos exames não tinha receio, muito embora me enervassem bastante. Foi por esse tempo que namorei com a Marta.
“A solidão é um estado de espírito, sempre se pode mudar um estado de espírito!”, diz-me o professor. “Somos animais de hábitos, um hábito negativo pode ser sempre substituído por um hábito positivo mais potente”. Potência é uma palavra que ele gosta de empregar, potências positivas, assim como as há negativas. “As primeiras produzem alegria, as últimas são a tristeza, o medo, a inveja, a esperança”. Gosta de citar os seus filósofos preferidos: Epicuro, Lucrécio, Espinoza, Marx, e ensinou-me que todos eles, no fundo, são semelhantes, e que o que escreveram é sempre actual.
Falei-lhe na Marta, fora aluna dele também. Aqui fizemos uma pequena excepção: falámos desse passado. Mas queria ouvi-lo dizer que a Marta fora uma excelente aluna e apesar de ser discreta, não participara menos por isso nas actividades. Conversámos sobre a possibilidade de ser ela mesma que eu vislumbrei na cidade onde eu resido. Talvez, afinal Lisboa onde estudámos não é longe, ela cursou medicina, portanto pode ter andado de hospital em hospital. Mas deve encontrar-se há pouco tempo na cidade onde a vi, porque de outro modo seria completamente estranho não me ter cruzado com ela várias vezes. É verdade que o novo hospital situa-se a quilómetros de distância da capital do concelho...“Olha, meu caro, até pode lá andar há muito, só que nenhum de vós andaria então disponível para se reconhecerem…”. Andarei eu disponível, eu que enviuvei de uma mulher que já não amava há muito? Andará ela disponível para um encontro? “Pergunta-lhe e logo saberás!». É verdade, professor.

DIÁRIO DE MARTA
4.03.
A saudade é uma companheira cruel, não me seduz com palavras mansas, emoções doces, mas com punhaladas, agulhas de aço, fotografias a preto e branco, um nevoeiro que afugenta o sol, um redemoinho no mar, uma lagoa fétida, uma torrente de sangue, uma sirene, uma maca, uma máquina, um ecrã, um gráfico, aquele som intermitente e assustador…Gisela, minha filha, meu amor, pedaço de mim, perdi-te para sempre e não vou encontrar nunca mais nada, ninguém mais, que te substitua.  Porque não morreu ele em vez de ti? Onde estava Deus? Que farei agora de mim nesta vida sem significado?
Do alto das falésias de Santa Cruz apenas me chega o silêncio ensurdecedor do oceano. Estou mais só que Deus no infinito. E Ele está velho e surdo... Lá em baixo, sobre as rochas, imagino o meu corpo destroçado…A dor de mãe é inextinguível. Como se pode esquecer uma filha com cinco anos de idade que uma mãe perdeu para sempre, para todo o sempre? Nunca mais serei feliz, nunca mais. 
Na hora da nossa morte…Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte!

DIÁRIO DE MARTA
5.03
   Hoje a minha filha adorada faria anos. Cinco anos. Estive há pouco a ver fotografias. Não devia. Provocam-me um dor insuportável. É masoquismo, eu sei, mas não quero esquecê-la, não quero que algum traço, pequenino que seja, desapareça com o passar do tempo. Eu vivia para ela, agora quero viver com ela. O seu cabelo cheio de caracóis, os olhos claros tão lindos, o seu pequenino corpo colado ao meu, que brincadeiras malucas fazíamos no banho, trepava que parecia um macaquinho, a Gisela da minha vida, do meu coração...Porque não tenho coragem para cortar as veias? Cobarde...cobarde...

 

DIÁRIO DE MARTA

  Gisela, hoje vou buscar-te à escola um pouco mais cedo!, Mamã! Porquê?,Porque tens que cortar o cabelo e a cabeleireira só nos pode atender a essa hora, Mamã!Mas eu não quero cortar o cabelo!, Gisela! Deixa-te de birras! Queres ir para a escola com uma trunfa? Achas.te bonita assim?, Mamã! As outras meninas também andam com o cabelo comprido!Olha mamã: mesmo muito comprido!, Gisela, toda a gente tem de cortar o cabelo de vez em quando, sobretudo as meninas e os meninos por causa daqueles horríveis bichinhos que nem quero dizer o nome...,Mamã! Chamam-se piolhos! Mas não vás buscar-me muito cedo porque quero brincar com as minhas amigas!


DIÁRIO DE CARLOS
7.03.2015
Procurei fotografias de Marta, de nós ambos, revolvi gavetas, dossiês, sacudi livros, discos, meti-me no carro e fiz a viagem a Mafra, à velha casa que meus pais me deixaram, com a esperança de que lá tivesse deixado há vinte ou mais anos as fotografias que procurava. Em vão. Sempre destruí tudo que me lembrasse os namoros fracassados. Realmente foi uma destruição completa. Os meus pais, então, haviam apreciado esse namoro –namorico, teriam pensado –conheceram-na, levei-a a casa, a minha mãe aprimorou-se no jantar, o meu pai sorria com alguma malícia, se é que me lembro bem. Agora recordo alguma coisa e até nos seus detalhes. Está tudo na minha memória; de material, porém, nada resta.
Uma noite destas hei-de ir à Ericeira e às escadinhas da Praia do Seixo em Santa Cruz, locais mágicos dos nossos primeiros encontros, primeiros beijos. Que nostalgia…Marta, hei-de reencontrar-te! Hei-de mostrar-te o projecto da minha ponte, convidar-te-ei para estares ao meu lado no dia da sua inauguração. Estarás casada certamente, com dois ou três filhos. Irei aos hospitais, ao Centro de Saúde, procurar por ti. Encontrar-te-ei. Serás feliz ou infeliz?

DIÁRIO DE MARTA
10.03.

Voltei ontem à noite a Santa Cruz, o trabalho no hospital arrasa-me os nervos, faz-me bem conduzir por aí afora, embriagar-me de silêncios para sacudir da minha cabeça os gritos que escuto, as súplicas que, nas enfermarias, me dirigem. Percorri a estrada que leva à escadaria da praia da Formosa, segui mais adiante e estacionei no exíguo espaço do miradouro no topo da falésia que os namorados escolhem num assomo de romantismo para atraírem o abismo, um muro não muito alto impede-nos de lançar o carro arriba abaixo. Podemos, se virarmos à esquerda por um caminho estreito, não sou a primeira a pensá-lo, nem a primeira a passar da intenção à acção. Imagino o automóvel a rebolar por ali abaixo, as rochas a rasgarem a chapa, o tejadilho a esmagar-se, o depósito de gasolina a explodir. Estremeço. Desejo morrer e ao mesmo tempo não quero. A cabeça quer, o corpo não. A minha tristeza não é daquele género que leva as mulheres a beber veneno para os ratos (matou-se deste modo uma mulher que entrou na Urgência, encontraram-na horrivelmente inchada), ou a lançar o automóvel do cimo das falésias de Santa Cruz. Preferia deitar-me e não acordar. Preferia injectar uma dose letal de uma droga e assim desvanecer sem dor e sem consciência. Até para isso precisava de ter iniciativa, e iniciativa é o que me falta seja para o que for. Necessito realizar actos, contudo há um motor avariado no meu cérebro, limito-me a cumprir os comportamentos profissionais de rotina e nada mais. Quereria ir ao cinema regularmente, tantas vezes quantas os muitos filmes anunciados que me agradam, assistir aos espetáculos da Companhia Nacional de Bailado, ir a Almada ao Teatro de Joaquim Benite,de que gosto tanto, não sou capaz sozinha de me decidir. Saio dos turnos do hospital mais do que cansada, exaurida de toda a energia, sufocada com o sofrimento a que assisto, às dores e às mortes que não posso evitar, trago comigo um sono de séculos, como se a cura pelo sono a que me submeti não tivesse terminado. Talvez seja a defesa natural do meu corpo, dormir, esquecer. Contudo, tenho de repetir os mesmos actos: erguer-me com as imagens da minha filha morta a ocupar-me todo o espaço dos meus pensamentos, logo pela manhã.
O meu ex-marido enviou-me uma mensagem perguntando-me se estava tudo bem comigo. O sacana! Ainda se atreve. Eu sei que ele me ama, que deseja mais que tudo o meu perdão. Nem amor, nem perdão. Ponto final. Grande bêbado!
A minha tristeza não tem fim. É constante e dolorosa como uma faca espetada na mente. Rodeiam-me acontecimentos que não me interessam nada, atravesso-os com absoluta indiferença, vejo mas não olho, vejo o mundo a desabar, a anarquia nas ruas, as chusmas de desempregados em fúria, as multidões iradas a clamar contra os salários congelados, os partidos políticos a organizarem manifestações de protesto contra um governo que não se acautelou com a crise que se sabia que aí vinha, que perdeu o controlo sobre os muito ricos, que privatizou tudo e esse tudo logo se transformou em negócio, que proclama que não tem dinheiro para pagar aos funcionários e no entanto vai protegendo as fortunas dos donos disto tudo. Vejo velhos e novos partidos a defenderem a salvação do país através de soluções autoritárias: populistas demagogos a proclamarem que prometem sol na eira e chuva no nabal,como dizia o meu pai no tempo em que ainda se resolvia a falar, a democracia suspensa,, ou seja a ditadura, regimes de exceção, proclamações delirantes de nacionalismo serôdio. Corrupção, corrupção a rodos, sem vergonha. sem medo das leis e dos tribunais, porque as leis servem à medida de quem as faz, e os tribunais de quem os suborna.Pois sim, que se afunde o país, afundada ando eu e ninguém me acode. Na realidade sou eu que ando a acudir aos desgraçados que me caem nas mãos na urgência do hospital. A mim ninguém me socorre.Quem me dera poder desaparecer, refugiar-me no outro lado do mundo! Não me apetece trabalhar, estou farta de ver doenças, de cheirar o cheiro da morte. Hoje a ambulância do INEM trouxe um rapaz com fraturas múltiplas, um desastre de mota, mais um, não há mês que não chegue um já cadáver ou em agonia, quase todos jovens na flor da idade. Há uma mulher que veio acompanhar o marido, ambos muito idosos, que quer contar-me a vida toda que viveram juntos. São de um aldeia, pequenos lavradores. Que paradoxo: um rapazito que vai ficar deficiente para sempre porque quis correr riscos para se sentir vivo, e um velhinho que recusa morrer...É a morte que é um absurdo? Se ela for um absurdo, de que sentido faz acreditar na imortalidade da alma? E, no entanto, eu quero crer. Quero acreditar que irei reencontrar a minha filha.
DIÁRIO DE MARTA
12.03.

A igreja de São Pedro, o tamanho da capela, a sua arte interior e a modéstia do seu exterior, apesar da bonita portada manuelina, agrada-me, acolhe-me sem vaidades e ostentação, sinto-me mais recolhida como em todos os templos pequenos, mais sossegadamente só, comigo mesma ou talvez com Deus, se acaso Ele existir, eu quero crer que existe, eu gostava que existisse, necessitava que existisse, todo Ele bom, misericordioso, compassivo e compreensivo. A igrejinha de São Tiago também é assim, sóbria e discreta mais ainda, como se fosse uma igreja construída por pobres para os pobres. Eu sei que os pobres admiram as igrejas ricas, cobertas de oiro e esplendor, que os submete, intimida e parecem demonstrar o vasto e eterno poder da Igreja católica. Comigo não se passa assim. Nessas vejo somente o poder de uma instituição terrena, nas outras deixo-me invadir pela vontade de crer, pela comoção. Gostava de possuir, ser possuída, por uma fé inabalável. Nada peço porque nada há a esperar após a morte de um ser tão querido, apenas o luto. Na verdade, tudo peço. Refugio-me no canto mais discreto, longe das beatas que recitam orações pela salvação do país mas principalmente delas mesmas e imploram curas milagrosas para os seus achaques de velhas, logo após as suas visitas perpétuas ao Centro de Saúde. No hospital chama-se por Deus e quem acode somos nós, as médicas, as enfermeiras.
À saída recebo uma sms da Carla, convida-me para tomar um café em Lisboa, respondo-lhe que aceito, no Centro Comercial do Saldanha, amanhã, pela tardinha (se o caos não se agravar). Mesmo a propósito, pensava enviar-lhe um convite, gostava de saber quem é esse Carlos de que falou com suspeita ligeireza. Carlos há muitos evidentemente, mas desde que me pareceu vislumbrar o Carlos da minha juventude, passei a interessar-me por eles. Certamente que não é ele, mas quem sabe?


DIÁRIO DE MARTA
12.03.
Reajo à dor, meto-me no carro e passeio-me por colinas e vales desta região que, outrora, devia ser soberba, há um século, há dois, quando os franceses se perderam aqui, perderam a vida e a glória. A serra do Socorro, Dois Portos, o lugar da Buligueira onde nasceu Félix Henriques Nogueira, o pioneiro da ideia socialista – não sou tão ignorante que o não saiba! - o apeadeiro dos caminhos-de -ferro em Runa, tão bonito como tantos apeadeiros e estações do nosso país interior, abandonado, provinciano, seria com toda a certeza confortável, doméstico, acolhedor, agora ao abandono. Portugal possui regiões tão diversas que não percebo quando alguém sensível e bom observador privilegia uma sobre todas as outras, quer seja o Alentejo que acho magnífico, e a palavra é justa, porque me faz sentir a extensão, a planura, quer sejam os desfiladeiros cavados pelo Rio Douro, quadro que mede meças com as regiões mais afamados da Europa e cá para mim até ultrapassa! Este Oeste, talvez com a excepção da serra do Montejunto, sim, é alcantilado, mas feminino, nos roliços peitos que ponteiam a paisagem, lhe aguçam os vales mansamente. Não sou tentada por mulheres, contudo aprecio a beleza de algumas. Nas aulas do 1º ano da Faculdade deambulava por lá uma colega que atraía os olhares de toda a malta,rapazes e raparigas. Por vezes distraia-me da chateza de uma aula a observar aquelas mamas soberbas umas pernas formidáveis que exibia para o professor.

Encontrei-me com a Carla. Encontrei-a juvenil, airosa, vestida com gosto, uns bonitos olhos azuis aparentemente ingénuos (aparentemente, o azul engana de verdade!), um andar de bailarina frágil, que a torna agradável à vista, ainda que, provavelmente, não obrigue os homens a olhar para trás quando ela passa pequena e franzina. Propus-lhe que visitássemos a galeria de arte do tal Bártolo, tinha curiosidade de entrar dentro daquela espaço onde a minha mãe provavelmente seduziu ou se deixou seduzir. Fica no Bairro Alto. A entrada é exígua mas o espaço prolonga-se por duas ou três divisões decoradas com simplicidade e bom gosto. Os dois pintores pós-modernos cujas obras estavam expostas, um homem e uma mulher, não me suscitaram grande admiração: uma montra, ou estante de um supermercado, repleta de alimentos preparados industrialmente. Realmente estive atenta sobretudo a quem lá entrasse. Recebeu-nos uma empregada que logo nos deixou à vontade. Demorei-me o mais que pude com a esperança de ver chegar o dono. Foi quando nos retirámos que ele se cruzou connosco à saída. Carla tocou-me no braço, mas não era preciso, reconheci-o imediatamente. Com cachecol de seda colorida ao pescoço, um chapéu preto de abas largas, um jeito delicado de andar, uma voz maviosa com que nos cumprimentou, dava aquela aparência de homossexual que certos homens dão sem o serem necessariamente. Seria bissexual? E sorri para mim mesma com aquele pensamento perverso. O amante de minha mãe. Que surpresas nos reserva a vida? Que me reservará a minha? Afinal, vou compreendendo a atitude de minha mãe: casada há dezenas de anos com um homem silencioso, que se refugia cada vez mais no uísque, apagado, vê-se, ou viu-se, sexagenária, o corpo a decair nos entrefolhos da velhice, o tempo a passar depressa, naturalmente abalada pela morte da sua neta adorada, o divórcio da filha, a tristeza em que me vê mergulhada, tornou-a presa fácil de uma paixão serôdia. Também eu já não sou nova e admito agora que o amor, ou as paixões, o que quer que seja, não respeita idades. De resto, o Bártolo deve ser da idade dela, embora pareça mais novo, provavelmente pinta o cabelo como, aliás, sucede com a minha mãe. Tenho pena, evidentemente, do meu pai. Pode ser que ele reaja mudando os hábitos e os vícios, se souber o que se passa. Mas duvido que saiba, tão inerte que ele é.
Quis saber pela Carla o máximo que pudesse sobre esse Carlos. O pressentimento tem razão de ser: o meu primeiro namorado veio a cursar arquitetura e chamava-se Carlos. Não soube com facilidade tornear a questão, mudar o rumo da conversa, a Carla contava-me sem pausas o que lhe ia sucedendo no mestrado nas áreas da Arquitetura, as dificuldades de adaptação quando iniciou o curso, a Faculdade tão diferente da Escola Secundária, os novos colegas, as invejas e alguma exclusão que encontrou naqueles grupinhos que se faziam herméticos, as novas amizades, o namorado…Fiz-lhe perguntas sobre o namorado, com o propósito de chegar ao Carlos. De chofre questionei-a: “Fala-me de3sse teu namorado arquitecto!”. (Aqui falei-lhe sobre o meu ex-marido para permitir que se sentisse à vontade e não adivinhasse a minha intenção) Hesitou, serviu-se da garrafa de água, confessou que fora uma relação muito forte mas com termo certo, o seu primeiro homem, era virgem, confessou, a diferença de idades, os mundos separados, os novos círculos em que ela na faculdade se envolveu. Já ia mudar de assunto (quis demonstrar que o passado estava definitivamente encerrado) quando disparei a pergunta cuja resposta me poderia levar à confirmação: manténs algum contacto com ele, enfim, às vezes ficam ótimas amizades (questões evasivas), onde anda ele, reside onde? (Esta era a pergunta decisiva). «Vive em Torres Vedras». Estava feito o teste. E era positivo. Foi em Torres Vedras que o vi. Agora posso afirmar que o vi.

DIÁRIO DE CARLOS
12.03.
Já não sinto a mesma surpresa que me tomou de todo: de facto, os acasos, as coincidências existem e nem sempre são puras coincidências. Marta pode habitar realmente na mesma região que a minha, até a mesma cidade, a maior parte do tempo passo-o em Lisboa, ela terá vindo a residir em Torres Vedras recentemente, até mesmo muito recentemente. Nos tempos em que íamos acompanhando a vida um do outro ela residia na casa dos pais para os lados de Alcântara e em Lisboa terá permanecido depois de casar. Com o casamento dela perdi-lhe o rasto. É bem possível que ultimamente haja decidido habitar numa região que oferece melhor qualidade de vida do que o inferno da capital, os jovens saem daqui, os mais velhos regressam ou escolhem-na pelo interior sossegado, pelas praias. Enfim, o país é pequeno, até o mundo o é. Mas este país já não é sossegado.
Fui visitar novamente o Professor. Na idade que alcanço, nesta viragem da vida ou crise como alguns classificam, fazemos o balanço e a conclusão a que chego é que não produzi nada que valesse a pena. Nunca me identifiquei com coisa alguma, não me comprometi com pessoas e causas. Nunca pertenci a nenhum partido político, nunca a política me seduziu enquanto militância ou carreira, nem os negócios ( ao contrário da falecida, toda entregue à galeria, às transações e às viagens e aos contactos).
 Cada vez me distanciava mais dela, apenas quando a sua doença fatal se revelou nos aproximámos, por cumplicidades, hábitos, compaixão. Desconheço quantos amantes teve, resguardava-se habilmente mas não mentia, se eu lho perguntasse ela confessava; eu limitava-me a fingir indiferença, distracção. No fundo, incomodava-me, e estou absolutamente convicto que também a incomodava a ela; provavelmente vingava-se da minha indiferença, vingava-se sobretudo das amantes que eu tive, sempre mais novas do que ela. Um casamento de disfarces: ambos nos disfarçávamos com as respectivas ocupações. Na verdade, ela é que andava sempre atarefada, produzia, as coisas aconteciam pela mão dela; eu arrastava a minha moleza, desenhava no gabinete sem inspiração, por rotina, ainda que não fosse sempre medíocre o que desenhava, contudo sem paixão. Nesta fase da vida agarrei-me ao projecto da ponte como quem envereda por uma religião salvadora subitamente iluminado. Eu sei que é uma evasão, mas a minha vida é toda ela feita de fugas e contra-fugas. Filho de pais ricos, amamentado por uma ama e servido por um cortejo de criadas, nunca me faltou nada que eu desejasse, bastava choramingar com astúcia para receber automaticamente o brinquedo cobiçado (e logo desprezado). Talvez com as mulheres tenha sucedido o mesmo. Seduzia, era seduzido, fruía, largava (talvez por isso era largado). Só o meu pai era severo com as regras. Regras que tenho seguido, conscientemente ou não. Calcular bem antes de dar um salto. Nisso até o atletismo me auxiliou bastante. Obedecer só a mim mesmo. Admitir que o outro tem mais razão que eu não é obedecer-lhe. Não obedeço a tiranias das maiorias. Obedecer ao código da estrada não é obedecer, mas cumprir o que é razoável para todos.
Encontrei o Professor no seu quintal. O jardim de Epicuro, como ele designa com ironia aquele pedaço, quase breve, de terra (a minha casa paterna, pelo contrário, possui um vasto terreno), toda coberta de uma espantosa variedade de flores, produtos hortícolas, árvores de fruto, não sei como cabe tudo em tão curto espaço. Calça uns botas de borracha, tem um chapéu de palha na cabeça. Sorri com simpatia quando chego. Sentados a saborear um excelente vinho branco contou-me, desta vez, episódios da sua vida, estranhei estas confidências que nele não eram habituais: «Com o avançar da idade, no inverno – na minha idade um inverno soma-se penosamente ao outro- vem-me uma dorzita aqui na perna direita. Sofri um grave acidente de viação há muitos anos, tinha eu vinte e um anos. Enfim, o que é a velhice senão o desgaste de todas as peças da máquina?»
Fiquei a olhar fixamente para o meu antigo e admirado Professor. Nunca nas aulas confidenciou aos alunos da sua vida fosse o que fosse. Ia contando-me agora. Com um chapéu de palha e umas botas de borracha no seu jardim de Epicuro. E senti uma profunda amizade por aquela figura de estatura modesta, na qual o tempo implacável socavava os alicerces. Li-lhe nos olhos uma infinita melancolia, embora as palavras soassem com serena resignação.
Quando parti, uma interrogação atravessou-se-me na mente: Será que a sua solidão o conduz ao suicídio?
DIÁRIO DE CARLOS
18.03.

A minha casa materna. Com as partilhas do divórcio a casa grande de Mafra ficara para a minha mãe. Houve litígio mas não foi porque o meu pai frequentasse assiduamente esta mansão. Ela suicidou-se, já desapareceu, ele não, conserva-se vivinho da silva na capital, rodeado de belas mulheres a secretariá-lo na empresa, presidente da administração e principal accionista. O meu pai vem de longe, no mau sentido dessa expressão que alguém inventou e canta. Vem de longe neste caso porque vem da ditadura, vem do tempo em que Salazar lhe permitia visitá-lo.Segundo ele próprio se gabava (eu era um miúdo e tinha que escutar aquelas bravatas!, o velho das botas, o velho abutre, dava-lhe um abraço à despedida...E com Marcelo Caetano a mesma coisa, ou mesmo mais, porque este era diferente, dizem, do anterior. Já não vejo o meu pai fascista (ou democrata instalado confortavelmente nesta democracia que lhe convém de todo) há muitos anos. Ele envia sms a perguntar se necessito de alguma coisa, às vezes é a Emília, a secretária mais antiga e fiel, que me liga a transmitir abraços do meu pai, seu patrão. Raramente lhe respondo a ele e respondo com cumprimentos formais. E porquê? Porque o odeio e o desprezo? Porque a minha mãe entristeceu ao ponto de se suicidar por culpa dele. Pela frieza, distância, arrogância com que ele entrava e saía de casa. Nunca me fez uma festa no cabelo, que me lembre, quando eu era um catraio! A minha mãe nunca me confidenciou mas sempre me convenci que ele tinha outra mulher, por ventura outra família. Estou convencido que a família que ele tem agora já a tinha antes. Os meus meio-irmãos nunca lhes pus a vista em cima. Sei que o pai os mandou procurar-me mais que uma vez até há uns anos, quis com certeza conservar-me na família. Sempre os evitei. Só precisei da ajuda dele até acabar o curso. Era dever dele.

 Cheguei ontem noite alta. Acendi todas as luzes e o espectro do meu pai não se materializou. E nada existia ali que tivesse sido dele. Todos os objetos e móveis mais antigos haviam sido comuns. Salvaguardei tudo nos seus lugares para tentar travar o devir do tempo. Cristalizado no quarto, nas estantes dos livros, na sala de estar. Fixar o tempo, fixar num ponto do devir a casa como uma ilha no caos. Eu sou feito de acontecimentos, contudo quando reentro nesta casa, quando a ela regresso, nada aconteceu dentro dela, excepto a erosão macia e quase imperceptível dos materiais. Nesta casa parada no fluxo do tempo não há vida humana, a matéria não emite afectos, somos nós: sento-me no longo e largo sofá onde a minha mãe fazia as suas sestas (muitas vezes sob o efeito dos medicamentos) e não a sinto presente.Não tenho a experiência dessa lembranças que, dizem, surgem como miragens.Nada se passa comigo. Passo no corredor atapetado (vem uma trabalhadora de vez em quando limpar), os quadros nas paredes, e nada sinto que daí venha de físico, tangível, nem das escadas de boa madeira em caracol que levam aos quartos.Nem físico, nem transcendente. Somente um silêncio angustiado, fracturado pelos meus passos. Uma casa assim está esvaziada ou cheia de nada. E eu encontro-me só. A minha família morreu. Fui embalado por uma ama num berço de rendas, irei morrer sozinho num lar obscuro.

Evito pensar no meu pai. A sua severidade era real, o seu encanto social era postiço.Salazar fora o seu ídolo, era modesto, salvara o país, protegia o ultramar. Provavelmente dispensava mais veneração ao ditador que afeto pela mulher, minha mãe. Nunca recebi amor paternal e perdi o amor maternal. A minha mãe possuía uma bela voz de soprano. Dominava a grande música erudita e Verdi era o seu refrigero.O marido a dirigir empresas coloniais, ela a ser dirigida por maestros invisíveis. Na verdade, se esta casa está vazia agora, é desses fantasmas.Eu carrego um, e não sei como se chama.O meu pai, ou a minha mãe?  
Procuro um livro nas estantes para me ocupar. Servia bem o Camilo, o escritor que o meu severo pai mais apreciava. Ligo o velho televisor, elimino o som. Abandono depressa o livro, A Ilustre Casa de Ramires, já o lera na juventude, retiro o computador da mala, consulto o correio. Dois email chamam-me a atenção: um, do meu chefe convocando-me para a cerimónia de lançamento da primeira pedra, início da construção da ponte, da minha ponte. Já sabia, o tipo não quer é que eu me balde! Que burro, nunca faltaria a esse momento! A ponte que eu desenhei e vou acompanhar passo a passo é o projecto da minha vida. De uma vida. Perseguirei implacavelmente os engenheiros, os mestres e contramestres, cada operário, para que nada falhe e tudo se cumpra escrupulosamente conforme o que arquitectei.
O outro email é do Professor. O título provoca-me perplexidade e alguma inquietação: «O meu Credo Testamento».

DIÁRIO DE CARLOS
18.03- 21h
Leio: «Redijo este testamento intelectual numa altura em que me encontro na plena posse das minhas faculdades mentais. Quer desapareça amanhã, quer viva mais dez anos deteriorando-se o corpo e a mente, o que eu agora afirmo é o que fica a valer.
A crença de que não possuímos alma mas uma mente inseparável do corpo, um cérebro que é o corpo, é uma evidência absolutamente irrefutável. A nossa Espécie é apenas uma entre milhões delas; deriva de um elo comum. A Vida extingue-se e recomeça diferente. O que destrói o velho, cria o novo. Outras espécies humanas não sobreviveram. A morte de uns proporciona a sobrevivência de outros. Nenhum Plano, nenhuma Evolução do mau para o bom. Somos o resultado de erros das cópias e de muita inteligência para proteger as crias. Para não morrer inventámos a agricultura e a domesticação, estendemos cidades sobre aldeias, vieram os Estados e a ordem dos mais ricos, veio a escrita para registo das propriedades, das primogénitas narrativas míticas orais vieram a lógica e a filosofia. Tudo andou e anda ligado nesta totalidade que é a natureza e a história humana, de várias totalidades composta. Não houve progresso linear: a agricultura também degradou as condições de vida dos primitivos, e com as cidades e os Estados impôs-se a casta militar e o trabalho escravizado. Paradoxos: os chefes guerreiros saqueavam, oprimiam, mas também protegiam dos inimigos. A cultura sempre andou de mãos dadas com as irmãs gémeas: a desigualdade social e as guerras.  Por debaixo de sublimes monumentos que desfrutamos hoje encontram-se cemitérios! Civilizações e barbárie. Sem a segunda não vingavam as primeiras. Um dia havemos de acabar com este rosário!
 Assim como as mitologias se baseiam a animais fantasiosos, todas as religiões se resumem a fantasmas e a mortos-vivos.
Ora, nenhuma realidade transcendente explica melhor a Natureza do que o saber científico. Com ele ficámos a saber que o universo ao qual pertence o planeta que habitamos teve uma origem natural e terá um fim irreversível. Sim, este universo não teria nascido se não viesse de alguma coisa material, um ponto singular que emergiu de um mero acidente catastrófico, num infinito pluriverso. Estou convencido que se saberá neste século quase tudo sobre as nossas origens e sobre a existência de outras formas de vida extraterrestres. Tudo nunca se saberá.
 Existe uma única Substância, como na antiga filosofia se dizia, que é material (isto é, não puro espírito), imanente a tudo que é actual e potencial, com massa e sem ela, equivalente à energia que tudo move, cria e destrói, que se exprime de diversos e diferenciados modos conforme as ondas ou os corpúsculos, físico-químicos, biológicos, sociais.
Portanto, a sociabilidade que é a marca distintiva da nossa espécie não deixa de pertencer ao mundo material. A sociedade é a continuação da natureza. Sem as relações sociais, sem a experiência social, não existiria sequer a subjetividade.Sempre histórica, sempre mutável. 
O bom por vezes é o mau e vice-versa. Penso nos mitos que, embora fantasiosos, encerravam tantas utilidades para esses povos! Tanto saber encriptado para nós, revelador para eles! A própria religião medieval desempenhou também um papel positivo naquelas duras condições em que a vida transcorria sob a ameaça permanente do sofrimento e da morte.
Estão sempre errados aqueles que tudo interpretam à posteriori como prova do seu pessimismo. Tanto os pessimismos como os optimismos são coisas vazias. Por enquanto o género humano não chegou ainda.Existem indivíduos singulares que agem dentro de grupos grandes e pequenos.O conflito é a regra.Criar e destruir. Destruir para criar ou o contrário.
Creio nestes axiomas porque apresentam-se hoje à minha razão com indubitável evidência. Os conceitos nada significariam sem as práticas sociais aprendidas e transmitidas. A racionalidade possui razões contraditórias: um lado coloca em risco a própria sobrevivência, a outra reconhece e inventa. E ela é assim porque não é independente, antes reflete interesses sociais diferentes e opostos. Este antagonismo que se manifesta no interesse de subjugar contra o interesse de não ser subjugado, percorre toda a história humana, em todos os momentos e em todos os lugares. A História se possui algum sentido é o desta conflitualidade. Por conseguinte, ou construímos sociedades que travem a lógica predadora do lucro pelo lucro, ou estaremos condenados a repetir a história. Os crimes contra inocentes que se cometeram sob governos socialistas, os conflitos internos que enfraqueceram alguns deles até à sua derrota final, não comprometeram a teoria fundadora do socialismo revolucionário nem amaldiçoam outros experimentos presentes e futuros.  
 
Eis o meu credo. Ditado pela minha mente que nenhuma doença ainda afetou. Se a primeira parte é irrefutável, a segunda, reconheço, é passível de refutação. Não deixa, no entanto, de ser racional. Creio mesmo que é a única solução racional.»
Que o professor Ramos era comunista, já nós o sabíamos na escola. Ele não o escondia fora das aulas. Dentro delas tínhamos que nos pôr a adivinhar. Não sei se estou de acordo com as últimas formulações do seu Credo. Claro que gostava de experimentar viver numa sociedade onde reinasse a justiça social e a efetiva igualdade de direitos. E deveres, já agora. Contudo, e se se viesse a repetir a ditadura que houve na União Soviética? É muito provável, acho eu, é lógico admitir isso, que pessoas vivendo em condições materiais miseráveis queiram muito mais sair da miséria do que preocuparem-se se isso é à custa da sua liberdade de criticar aqueles que os fazem sair da miséria. Isso, a mim, preocupa-me. Prezo muito a minha independência e espero sempre que os outros me respeitem.Socialismos? Que venham. Desde que se mude muito para que tudo não fique na mesma.

DIÁRIO DE MARTA
18.03.

Fui ao cemitério deixar flores para a Gisela. Não contive o choro. Não vejo como realizar o luto. Não há perda maior do que a perda de um filho, carne da nossa carne. Trouxe-a no ventre, amamentei-a, brincámos juntas, fez-me rir quantas vezes com os seus comentários inocentes, a música das suas primeiras palavras, a expectativa das prendas no natal e nos aniversários, que lindos foram! Um anito e outro anito, sempre saudável, a crescer depressa, menina inteligente, perspicaz, curiosa. A vida de uma mãe deixa de fazer sentido quando já não é mãe, quando a fatalidade lhe roubou a luz dos seus olhos.
Preciso de viver e não sei como.
Estive com a minha mãe. Foi necessário telefonar-lhe primeiramente não se desse o caso de não estar em casa, ocupada como anda, ou parece, com a sua paixão adúltera, não desejava de modo nenhum aparecer em casa de repente e deparar com o meu pai sombrio e apagado como uma vela gasta. No fim da conversa gostei de estar com ela, enfrentou a minha pergunta frontal sobre o amante com algum desconforto, mas depressa se recompôs: «Está certo, minha filha, mais tarde ou mais cedo tínhamos de conversar sobre isso, sei tudo sobre ti, julgo eu, e tu não poderias desconhecer o que se passa comigo. Não quero mal ao teu pai, fui feliz com ele tempo suficiente para o estimar, é bom homem e foi um bom pai para ti. Provavelmente o caso em que me envolvi passará um dia destes, não será talvez mais do que uma fuga aos silêncios que pesam sobre esta casa que já foi ruidosa quando tu e a minha netinha nos visitavam, o teu marido, ou ex-marido, também, não deves esquecer quanto ele era alegre e generoso connosco e convosco, mas, enfim, não falemos dele…Cometeu um desleixo trágico, inqualificável, muito embora eu talvez já lhe tenha perdoado, mas tu não lhe perdoas, e tens as tuas razões, o amor é um sentimento muito delgado, como um fino fio, quebra-se e desaparece por uma palavra que se diga, um ato que se pratica…Sei do que falo, em relação ao teu pai sucedeu isso e não cometeu o mesmo horror que o teu ex-marido, provocar a morte da filha porque falava ao telemóvel a conduzir, meu Deus!…Mas não falemos disso, é assunto que não esqueces mas queres esquecer, o teu problema é não conseguires fazer o luto, matutas, matutas, e dás cabo da cabeça e da tua vida, só tens uma vida, bem sabes, já não és uma jovem, o tempo passa depressa, sei bem isso! Tens que refazer a tua vida, eu não tenciono, está descansada! Refazer a minha vida com o Bártolo, falemos no nome dele porque pelos vistos já o conheces, não tenciono não, continuarei com o teu pai, a não ser que ele não o queira. É uma traição? Uma deslealdade? Pois seja, mas permite, minha filha, que eu resista à velhice que chega, ao tédio, à frustração, tive uma vida cheia, trabalhei bem, fui respeitada, trazia dinheiro para casa, não mereço, acho eu, um resto de vida infeliz com um homem que me ignora, que desperdiça economias no jogo e na bebida, não sei o que lhe sucedeu para se transformar num pobre diabo, diria que foi a aposentação, mas não me parece, nunca o vi trabalhar com empenho, parece que nasceu um fracassado. Mudemos de assunto…Não sirvo para te dar conselhos, sobretudo agora que não convives facilmente com o meu comportamento extraconjugal, eu sei, não vale a pena estarmos com evasivas, contudo deixa-me dizer-te o que me parece melhor para ti, para ti que és a minha única filha: já pensaste em ter outro filho? Evidentemente que não substituirá nunca aquela que perdeste, mas será um consolo, uma nova entrega, uma espécie de remissão da tua dor…Com quem, de quem? Não surgiu ninguém na tua vida, não te apaixonaste, não tens um amigo especial? Não tens ou não sabes? Fechaste-te em ti mesma, trabalho, casa, necessitas de sair, conviver, descobrir amizades, olha: dizem que se fazem bons casamentos através da Net...Olha lá, tu até nem precisas de recorrer a isso, ainda és uma mulher bonita, com quarenta anos és uma mulher madura, desejável para muitos homens com certeza, bastaria que saísses da casca onde te escondes, cuidasses mais de ti, não vais às compras? Não frequentas um ginásio? Tens dinheiro suficiente para isso! Estás divorciada, és uma mulher livre e emancipa...luta por ti, vai em frente! Traz-me um netinho, talvez até seja bom para o teu pai, talvez alegre esta casa tristonha, insuportável. Não queres casar novamente? Pois não cases! Namora o mais que quiseres e puderes, minha filha, vida só há uma e tu já a gastaste pela metade...» Assim falou a minha mãe se a memória doente não me falha. E eu registo aqui.
Quando saí de ao pé da minha mãe vinha absorta, admirada com o discurso dela, desenvolto, afirmativo, que bem lhe anda a fazer o tal Bártolo! E vim a matutar no que ela me disse.Um filho, porque não? Vou pensar nisso com a cabeça, calcular as estratégias. Mãe solteira! Selecionar o homem certo para essa função. Exclusiva função de dar-me um filho.

Na realidade casei-me apaixonada pelo homem que escolhi. Vi nele qualidades que eu admirava, qualidades pessoais que seguramente não perdeu. Mas os casamentos gastam-se como os pneus de um carro, tanto andam, tanta curva, tanta travagem...A princípio era a falta de dinheiro, eu a acabar a especialidade, ele a ganhar um miserável ordenado como professor assistente, e muitas despesas, com a casa que comprámos,os dois automóveis, a nossa filha que veio muito cedo. Depois o comportamento dele com a sua primeira mulher, com quem falava ao telefone nas minhas costas, é claro que eu não gostava, e, enfim!, entre tantas causas!, a frustração dele que manifestava nos últimos tempos :”Não me sobra tempo para escrever o doutoramento!”, sempre angustiado. Não o compreendi, confesso. Devia ter sido mais compreensiva, porque na realidade também eu própria sofria de falta de tempo para mim. Ele atraiçoava-me? Estou convencida que sim. A determinada altura notei nele comportamentos suspeitos. Mas nunca o apanhei em flagrante, nunca o encostei à parede, também não houve tempo para isso, deu-se o desastre, ela já bebia muito... a minha mãe julga que foi o telefone a causa...As duas coisas é que foram.Qual a minha parte de culpa? Esta vontade de me matar vem do sentimento de culpa? Se nos amávamos porque desperdiçámos a vida e o amor? Porque exigimos gozar de uma felicidade permanente que jamais é possível?

 

DIÁRIO DE MARTA

  Amor? O que lhe tenho é ódio. Se ontem me apeteceu morrer, hoje apetece-me matá-lo.


Diário de Carlos
1.04.

Ontem realizou-se a cerimónia do lançamento da primeira pedra para a minha ponte. Iniciaram-se as obras. Hoje, pela manhã, já lá fui e acompanhei os primeiros trabalhos de terraplanagem das arribas onde os pés hão de assentar. Naquela zona o rio estreita bastante, as arribas são elevadas, retirada a terra aparece a rocha. Furar o granito, enfiar nos poços as colunas, despejar cimento. Um único tabuleiro, suficientemente largo para o trânsito automóvel e para bermas seguras para os peões. Justificava-se que levasse apenas um arco, porém levará dois, verdadeiramente não serão arcos perfeitos, mas inclinados cada um para o lado oposto, ficarão com uma vibração harmoniosa, cada um a cair para o extremo oposto, dois contrários que se equilibram, lembro-me ainda bem das aulas de filosofia, de Heráclito, o filósofo obscuro mas divino, como explicava o professor Ramos, os arcos da lira, imaginemos duas liras, ou dois arcos, duas forças oponentes, duas forças que jamais se derrotam uma à outra. A minha ponte há de ser a imagem da identidade das contradições, digo eu, que não sou filósofo, porém não sou estúpido, vivi o bastante para descobrir que as contradições estão por todo o lado, tanto se aniquilam uma à outra, como se equilibram desde que o peso, ou a massa, ou a energia, sejam equivalentes. É esta tensão que aprecio. É esta tensão que traduzi na minha ponte.O nome com que ficará para a posteridade, não sei. Quem manda nisso são os políticos.
A cerimónia decorreu como é costume: o governador civil, o presidente da Câmara e os vereadores, os deputados municipais, a bênção do pároco, um destacamento de bombeiros e representantes engalanados de associações e coletividades. O ministro das Obras Públicas baldou-se, enviou um secretário-ajunto. O senhor presidente da Câmara fez um discurso empolado, em que falou mais dele do que de mim, mais das obras que promete do que a ponte que estava ali a começar. Tocou a charanga dos bombeiros e ainda foi o que melhor se ouviu. Como não houve porco assado no espeto, a populaça depressa debandou.

DIÁRIO DE MARTA

 Estou no limite das minhas forças: a judiciária bateu-me à porta! Queria saber se eu estive ontem de madrugada com o Fernando, e porquê? Perguntei eu com a maior das calmas, Porque lamentamos informar que o seu ex-marido morreu, apareceu morto na sua própria cama, não sabia?, Não, porque é que havia de saber?, Pois, não tinha que saber, estavam divorciados...mas diga-nos: não tem a chave do apartamento?, Certamente que tenho a minha chave, porque...Não, não é a sua chave, mas a chave do apartamento do falecido Fernando Noronha de Castro...Ah!Não, não tenho não! Porque havia de ter, não é?,Pois, é certo, porque havia de ter...Estavam separados há quanto tempo?, Há dois anos...mas desculpem, não estão a fazer demasiadas perguntas? Sou acusada de alguma coisa? Se estou a ser acusada..., De maneira nenhuma senhora doutora, de maneira nenhuma! Isto é apenas uma conversa.Mas olhe, senhora doutora: provavelmente teremos que a chamar mais tarde, bem vê, é normal, o falecido apresenta indícios de morte natural, um enfarte fulminante, contudo encontraram-se outros indícios...Claro que não podemos revelar...mas obrigam-nos a abrir uma investigação...Provavelmente não terá pés para andar, pode ser uma perda de tempo, no entanto somos obrigados a...,Entendo, meus senhores! Estarei à vossa disposição! Se não se importam temos que ficar por aqui pois tenho de me preparar para voltar para o hospital...,Certamente, senhora doutora, obrigado e bom trabalho ao serviço de todos nós, bom trabalho!

 

DIÁRIO DE MARTA

   Ontem consegui ter calma para descrever tim-tim por tim-tintim o que se passou. É o meu relatório. Descarrego os nervos. Escrevo para ninguém, escrevo para mim. Contarei a verdade um dia, agora ainda é cedo, não quero destruir este diário, os tipos são insistentes, não largam um suspeito. Mas serei suspeita?

  


DIÁRIO DE CARLOS
2.4.
Tenho saudades da Carla. No fundo, talvez me apeteça é outra mulher. Porque me lembra a Carla? Provavelmente porque não me apareceu outra ainda. Já o escrevi aqui: aquele ser pequeno e leve, aquele corpo jovem e sensual, mexia comigo. Aprendia depressa tudo que lhe ensinava. Suspeito que já o sabia, em teoria convenhamos pois que era virgem. Que energia naquele corpo sem as neuroses da mulher madura! Tinha eu quarenta e um anos, ela vinte e poucos, vinte mais exatamente quando começámos, noutro mundo poderíamos viver juntos, talvez casássemos, teríamos filhos…Mas não, nenhum de nós estava preparado, para casamentos não estou apto, por enquanto pelo menos, e a rapariga ainda menos estava: um mestrado a iniciar, projetos de realização profissional, rapazes da sua idade para conhecer. Que fui eu para ela? Uma iniciação. Que foi ela para mim? Uma aventura inconsequente. Que possuía ela a mais sobre as outras que conheci? Esse longo reportório…Talvez tivesse, nenhuma folha de árvore é idêntica à outra. Só as pontes se podem copiar…Ou nem isso! Será que projetei na minha ponte os arcos dançantes do corpo da Carla? Bailarina, tensão de opostos…Dançava no quarto danças eróticas, sob o ritmo de músicas que ela escolhia. Adquiri um grande espelho porque gostava de se ver a fazer amor, apressava-lhe o orgasmo. Possuía uns lindos olhos azuis que me atraiçoaram tal como avisa a experiência popular. Falar em traições talvez seja demasiado no comportamento dela. Quando descobri a troca de sms com o rapaz, ela garantiu-me que ainda não houvera uma relação íntima. Claro que houve, pensei. Porque era o que eu faria...Contudo, eu fora leal desta vez, o que nem sempre sucedeu com outras relações. Mas a memória é coisa subjectiva.
Como me recordará? Replicará com o jovem namorado as cenas que montámos os dois? Não, não é possível, somos de certeza absoluta completamente diferentes. Esse mito de que as mulheres procuram em homens diferentes o mesmo homem, tanto se aplica a elas como aos homens. Simples mitologias. Ou não? No meu caso, talvez o meu caso seja excepção, mas porque serei eu excepção seja em que for, eu que pouco valho? Sempre mais atraído por olhos azuis, cabelos loiros? Sim, é verdade. Contudo, por quantas morenas de olhos castanhos me apaixonei? Claro que uso o verbo com algumas reservas. E apaixonei-me mesmo? Avalio o passado amoroso e só vejo sexo. O afecto eram as carícias...Os romances cor de rosa, as revistas, o cinema francês, exploram a palavra «Amor» (em qualquer língua, é claro) como se ela fosse uma mercadoria. Parecida com o mito de Tântalo: rodeado de água e não lhe consegue chegar.

Enfim, que a ponte realize os meus sonhos e já é bom. Vejo este país tão desgovernado que se conseguir ver a ponte terminada já vai ficar feliz.



Diário de Marta
1.04.

Sim, procuro sair mais, seguir o conselho da minha mãe, aliás uma solução óbvia. Desde sempre que o soube, a dificuldade foi encontrar vontade, iniciativa, somente seguimos os conselhos para os quais já estávamos preparados. Ontem percorri a pé a cidade, se excluirmos a zona norte que cresce com relativa rapidez, a cidade de Torres Vedras percorre-se sem qualquer esforço. Observei com uma atenção que nunca lhe prestei o Convento da Graça, foi convento dos Eremitas Calçados (curiosa esta classificação! Andariam descalços os outros? O povo seguramente). É austero mas adornado com uma elevada e bela torre sineira, pouco mais posso descrever com termos técnicos que a minha ignorância nestes assuntos não é pequena (admiro os pouquíssimos médicos que arranjam tempo para serem cultos). O que posso afirmar como leiga é que o retábulo da igreja é bem bonito, as esculturas são delicadas nos tons e nas roupagens, o claustro é a parte de que mais gostei: um sorriso breve do sol de inverno adoçava-lhe as colunas e fazia apetecer a tranquilidade dos bancos. Visitei o Museu Municipal, a documentação sobre as invasões francesas, esse período histórico do qual quase toda a população na realidade não sabe nada. Julgo. Eu sei agora um pouco mais porque acompanhei com interesse o duplo centenário. Gostaria de ter apreciado o espólio arqueológico que o Museu guarda mas não expõe, disseram-me que era um espólio com alguma importância. Um destes dias subo ao castro do Zambujal donde algumas dessas peças, dizem-me, vieram.
Não pude visitar a Igreja da Misericórdia por estar encerrada, foi pena porque me disseram que era bastante bonita, alguém me assegurou que as duas igrejas mais bonitas da cidade é essa capela e a igrejinha aos pés do forte arruinado. Aproveitei para revisitar a igreja de São Pedro, com uma torre sineira que me informaram ser quinhentista mas reconstruída depois do terramoto de 1755, e um portal manuelino ao qual tirei algumas fotos (a fotografia poderia ser o meu entretenimento preferido se tivesse tempo e aquele à vontade que faz de um fotógrafo um autêntico caçador desavergonhado). Atravessei depois a pequena praceta que se situa nas traseiras e dirigi-me para o Chafariz dos Canos, enquadrado por uns prédios horrorosos, esse, um monumento que nunca vi igual, merecia uma área condigna, apetecível para se estar; aliás, o que mais falta, na minha humilde opinião, nesta cidade, é o enquadramento urbanístico dos lugares históricos e dos monumentos; aquele enquadramento que apela, e permite, o sentar-se ao pé, como se o monumento servisse essa finalidade desde a sua construção.
 Regressei à praça da igreja de São Pedro, sem automóveis! Meti-me pela ruela agradável (mas com lojas falidas, que tristeza!) que desemboca nos Paços do Concelho, este com um bonita fachada, virei à esquerda para descansar um pouco num banco aprazível da praça de Machado Santos, que é para mim talvez a praça mais aconchegada da cidade, pena ser despojada de árvores, ao lado a igreja de Santiago que já visitara antes. A vontade de comer invadiu-me sem aviso, mesmo assim decidi-me a subir o Centro histórico, recuperado recentemente, a guardar respeito e silêncio no interior da Igreja de Santa Maria do Castelo, a mais hospitaleira das igrejas de Torres Vedras, com uma luz diáfana e um belo púlpito. Não sou de rezas, contudo apeteceu-me rezar.  Não são as catedrais faustosas que os reis e os papas mandavam construir para garantir a imortalidade deles, como os faraós, que me comovem mais, mas as capelas, as igrejinhas modestas, às vezes perdidas e solitárias no ventre das grandes metrópoles, outras vezes peregrinas nas alturas dos montes ao pé do céu.
Não sei se Deus existe, se não. Se existir que tenha em paz ao lado dele a minha filha morta para este mundo. Como posso ter fé? Que necessito fazer para senti-la?
Amanhã vou visitar o professor Ramos, meu mestre nos tempos já longínquos do Liceu. Não sei o que me deu, que pressentimento, que vontade, que fui descobri-lo pela Net, provavelmente por causa de um dossiê de grupo que descobri por acaso, numas arrumações, em casa. Email enviado, email respondido de pronto. Vi a fotografia dele num blogue, a cabeça encanecida, os olhos com aquele brilho peculiar que muito colaborava para o interesse das conversas. As raparigas não desligam o professor corporal do professor espiritual. Suspeito que nos rapazes sucede o mesmo em relação às professoras. É humano. Na turma do 10º ano dizíamos em brincadeiras um bocado cruéis que uma determinada mocita estava apaixonada pelo stôr de Filosofia... Vou visitá-lo então, não é longe.
DIÁRIO DE CARLOS
2.07.

Há três meses atrás a minha ponte era apenas uma pedra e uma cerimónia, hoje erguem-se os pilares altaneiros cuja brancura pinta de sol a paisagem. Operários e máquinas em constante labor. Se ela demorou a iniciar-se, a nascer, tanto a mim se deve como à burocracia. Que não me culpe somente a mim o meu chefe, esse lambe-botas que mete cunhas por tudo e por nada. Enfim, provavelmente desta vez agiu com eficácia. Julga que lhe estou devedor, mas não estou. Admito que não me apressei a entregar o projeto, que era bom é o que importa.
Assisto à construção da ponte como se ela fosse uma ilha num mar encapelado de contestação social. A desordem de facto continua. Outros chamam-lhe sublevação, ou desejariam que fosse, eu chamo-lhe desordem social. O mundo em que fui formado estremece até aos alicerces. Seguros parecem ser os alicerces da minha ponte. Violento contraste entre os seus e os da sociedade, entre o seu levantamento elegante e seguro e o abatimento geral da sociedade, entre um futuro e um presente que já é passado.
Vivo dias de alguma euforia. As revoltas nas ruas não me inquietam, nem me tiram o sono. Entretanto, os novos projectos realizo-os por mera rotina. A crise instalou-se, as encomendas são escassas, excepto as moradias espaventosas, as recuperações principescas de mansões, quanto mais miséria, mais luxo. A minha classe média de outros tempos encontra-se em estado de coma, o meu pai não haveria de sentir-se nada bem se fosse vivo. Não tenciono alienar a sua herança, refiro-me à casa porque o resto já o gastei. Tudo voou nesses anos loucos de juventude. Viajei, comi e bebi, frequentei os melhores hotéis, comprei um barco que já não tenho e equipamento para pesca submarina que pouco utilizei, esbanjei dinheiro com mulheres de boa e má sorte, emprestei a amigos que nunca me devolveram. Enfim, estou reduzido a uma mansão que herdei onde raramente vou, a um apartamento e a um ordenado razoável. Às vezes pergunto-me se a Clara não foi atrás disto. Sucede-me isto naqueles dias em que a desconfiança ou o pessimismo me atacam logo pela manhã. Talvez não, talvez ela se encantasse com outros dotes meus. Quais serão é que não sei. Foi nos tempos em que trabalhou sob a minha chefia, chamemos-lhe assim, isto é, no gabinete, tudo se modificou quando decidiu terminar o curso superior ( será que trabalha em part-time nalgum sítio? Conseguiu uma bolsa de estudos?), novos colegas, novos amigos, e por lá anda com algum. Se me ajudou a fazer o luto pela esposa falecida, ninguém me ajudou ainda a fazer o luto pela perda dela mesma. Se já não sofro, ainda recordo, o que é uma forma de padecer. Nenhuma mulher substitui outra, provavelmente as mulheres dirão o mesmo dos homens. Ninguém é igual a outrem. Nem os acontecimentos.
Faço serão. Precisava de estudar uns projetos, porém são recordações que me assaltam. Frívolas? Exigências do corpo? Balanço do homem de meia-idade…Crise da meia-idade. Não conto as mulheres, não são troféus de caça. Caçado fui também. Lembro algumas é verdade. Não me esforço para lembrar as que esqueci. Antes da Marta, a Quina (diminutivo naturalmente de um nome próprio que ela própria detestava; a beleza verde dos seus olhos compensava perfeitamente), uma seriedade que nenhuma gargalhada vinha alterar, puríssima então como a neve, se acaso ainda se pode dizer tal coisa de alguém, mas é o que eu penso que ela era então. A Mary, inglesinha que conheci no Algarve (as mulheres loiras sempre me atraíram, não sei porquê, provavelmente por ser moreno, a lei dos contrastes), com a qual descobri em mim uma sexualidade insaciável. Muito mais tarde, já arquitecto, lembro agora a professora de belas artes, a Rafaela das mamas magníficas, as mais perfeitas de todas que eu tive nas mãos até hoje. Recusou-me como amante, oferecia-me uma amizade apaixonada, sexo não; ou talvez fosse sexo o que ela me deu, que sei eu desses mundos interiores? e que raio de coisa pode ser uma «amizade apaixonada?». Tenho dela uma triste-alegre saudade; fez-se desaparecer da minha vida definitivamente no dia em que me viu abraçado à Carla num banco do Parque das Nações. Nunca a entendi. Não sei se existe uma psicologia da Mulher; quando não entendemos uma mulher, dizemos que elas todas são diferentes dos homens. Na verdade, a minha certeza, é que nunca compreendi realmente o querer, digo assim, das mulheres que conheci.Ora querem quando eu não quero, ora não querem quando eu quero.As mulheres que conheci exigiram sempre que as adorasse e topavam com rapidez fulgurante quando eu começava a cansar-me. Essa coisa de «amizade apaixonada» veio a repetir-se com a a Madalena: dirigia-me repetidamente expressões emotivas de adoração («Adoro-te!», «Adoro a tua companhia!») e ,afinal, quando lhe ponho as mãos nas mamas, meigamente devo dizer!, saltou como uma gazela ferida, que «Não! Só sinto amizade!», que eu sabia muito bem que ela era casada e mãe, etc. e tal...Pois está bem então! continuei a escutar os seus telefonemas queixando-se do marido, disto e daquilo, mas quando me viu no mesmo restaurante que ambos frequentávamos juntos, com uma nova companhia, enviou-me uma mensagem pretensamente enigmática: por baixo de muitos rodeios e contradições, vinha um convite...Vá-se lá entender!
A Gabriela, também esta mal casada,precocemente casada e precocemente mãe, a beleza feminina mais doce das mulheres de vinte anos que ainda dão algum sentido à expressão maiúscula "Mulher". A pura sensualidade na mais pura bondade. Tocava-lhe a epiderme e logo fervia! Fugimos literalmente da cidade, três dias acampados na Nazaré, não parávamos de fazer sexo, quando regressámos passou o tempo da viagem absorta, triste, fechada como um túmulo, e nunca mais a vi. O apelo de mãe foi mais forte. Outro fracasso.Ou não foram fracassos? E se é assim mesmo a vida social? todos possuímos um "Eu". E dilemas. E escolhas difíceis. Não há uma psicologia inata deste ou daquele género. Há o desejo físico colorido com o sentimento. Os homens dominaram, exploraram e maltrataram as mulheres durante milénios. Não é ao homem que cabe libertar as mulheres. É a elas mesmas.
E nestas meditações avulsas acabo de evocar a Marta. Tão perto de mim e não dei ainda um passo para a descobrir! Como é meu hábito, ou defeito, aguardo que me conquistem. A bem dizer sei lá qual é o seu estado: casada, e bem casada, com filhos? Será possível retomar uma paixão juvenil, esquecida há vinte anos? De certeza que ela não quererá. Essa história do amor primeiro sempre lembrado, pode ser uma grande treta, como quase tudo que se prende com o «amor ocidental», como diria o prof. Ramos, quando nos falou de um livro, já não lembro título e autor, que parecia demonstrar que o Amor, com maiúscula, é uma criação recente, cultural, do ocidente. Qualquer invenção burguesa. E depois, vamos ser francos! sem hipocrisias, e se ela se fez, entretanto, uma estafermo? Feia, gorda...e eu também não sou nenhuma estampa.
DIÁRIO DE MARTA
8.06.

 Foi fácil descobrir o professor Ramos: bastou-me utilizar o Google. Várias informações sobre a sua vida passada e presente: textos de filosofia, comunicações em colóquios, trabalhos fotográficos, intervenções na política. E um blogue. Aí encontrei o endereço electrónico. Milhares de indivíduos têm assim a sua vida postada, como agora se diz, em pedaços, links que se cruzam, que se perdem nos intervalos, que é preciso costurar, descobrir. Ao fim de vinte e tal anos ele aí estava ao alcance de um clique, e-mail enviado, resposta imediata. Lembro-me de um folhetim choramingas na televisão que ajudava a encontrar parentes desaparecidos, a internet faz isso agora, sem cenas televisivas de fazer chorar as pedras da calçada.
Escrevo estas linhas (escrever um diário é conservar a sanidade mental, mais do que uma gaveta de lembranças. Devia-se destruir imediatamente a seguir: quantos equívocos podem os diários provocar em alguém que nos leia!) uma semana depois de me ter encontrado com o meu antigo professor de filosofia e de psicologia. Foi num café, na Ericeira, num dia de semana, naquelas horas mortas em que ninguém, no inverno, se demora (já quase não se encontram nos cafés fregueses a ler demorada e sossegadamente um jornal, um livro). A conversa fluiu rapidamente do presente para o passado, como se o meu interlocutor calculasse que era no passado que se localizava o motivo do nosso encontro (foi ele que me convidou, eu ainda não reaprendi a ser atrevida). Aparentava saúde e energia, contudo os seus sessenta e muitos anos evidenciavam-se, sem apelo nem agravo, na alva cabeleira que já anunciava a marcha inexorável da velhice, na miríade de finas rugas sob as pálpebras quando sorria, naqueles pequenos sinais escuros na pele que denunciam implacavelmente um sexagenário. Palavras de uma médica...
Elogiou-me a maturidade física -palavras dele é claro- com cautela e subtileza, lembrou o romance de Balzac, A Mulher dos Trinta Anos (não tenho a certeza de ser este o título pois que não li o livro), explicando-me que naqueles tempos em que a longevidade era curta as mulheres alcançavam a sua plena beleza madura nessa idade, hoje alcançam-na mais tarde. Queria relatar-lhe a tragédia da morte da minha filha, abrir o coração, ainda que acabasse a chorar, mas contive-me, afinal era o primeiro encontro com um homem que eu respeitara como professor (naquele tempo respeitávamos realmente os professores! Bem, é melhor dizer alguns, aqueles que o mereciam) que eu não via há mais de duas dezenas de anos, que ali estava envelhecido, talvez desconfortável pela mudança física com que se apresentava ao fim de tantos anos decorridos, com muitos sabores e dissabores, com certeza, mas não tão fundos como os dissabores como os meus com toda a certeza. Não via, realmente, nos seus olhos, aquele brilho de humor vivaz, que lhe conheci, que me permitisse aborrecê-lo com tragédias, porém, senti-me tão à vontade, inspirou-me uma tão insólita confiança, que estive quase a desabafar, ficará para um próximo encontro, neste falámos quase exclusivamente dos tempos em que eu era aluna dele. Soube trazer-me à memória a personalidade que eu tinha então, rebelde, afirmativa (eu, que na realidade me sentia tão insegura!), apaixonada (eu preferiria dizer: apaixonadiça!). Realmente envolvia-me em múltiplas atividades e arranjava tempo para todas elas, políticas, associativas, artísticas, nos colóquios e exposições na biblioteca sobre temas que ele propunha nas aulas, nos espetáculos teatrais que as turmas organizavam, nos concursos literários, nas mostras de fotografia...Tantos mundos que eu mal conhecia e que ele me abriu evitando sempre impor uma presença tutelar.
- Eras muito dotada. Continuaste?
- Não, ou quase nada. O curso de Medicina é muito exigente e longo, de resto a Faculdade não oferecia nada para além do marranço. Depois casei, mesmo antes de terminar já estava casada. O tempo já não chegava sequer para o internato, deambulações de hospital em hospital, uma filha para criar...
- Compreendo, a tua é uma profissão muito exigente, espero que não sintas essa exclusividade como uma frustração, temos que encarar isso, infelizmente ou não, como uma fase que não volta mais, eu também fui jovem e sei como é improvável, na maioria dos casos, manter essa abertura, essa curiosidade que é tão própria dos jovens. Mas que possuías dotes, lá isso sim sem dúvida! Talvez tivesse permanecido o tal bichinho, não?
- Claro! Está cá...Apesar da minha insegurança de então, da minha busca de algo que não sabia o que era, provavelmente buscava-me a mim mesma...
- Através dos outros, das atividades em que te vias a ti mesma de vários ângulos e facetas, sim, talvez.
- Ando a pensar entrar para uma associação, fazer teatro amador. Continuo a sentir muita necessidade de voltar à fotografia, ainda que não fosse uma artista por aí além...
- Pelo contrário! Eras dotada sim senhora! A técnica, a maturidade, vinha com o exercício continuado. Farias bem em retomar.
Deste modo foi decorrendo a nossa primeira conversa após tantos anos de separação. Se me abstraísse dos sinais evidentes de velhice que ele nem sequer disfarçava, se olhasse apenas para os olhos dele, conseguia imaginar-me a rapariga que eu era então, bem mais indeterminada, bem mais insegura, do que ele julga, ciumenta, porque não dizê-lo: invejosa? Uma mistura de sentimentos generosos e elevados, admito sem vaidade já que ele o diz, e de sentimentos superficiais, inconstantes. Uma incontrolável necessidade de ser amada, de me poder inserir nos grupos, ser convidada...Não ser esquecida, não ficar para trás.Tinha inveja das mamas grandes que outras exibiam, escrever isto até me custa...dizia de mim própria que era apenas um «patinho feio»...Exagerava as minhas deficiências (se é que o eram), culpava-me. É provável que ao prof. Ramos não lhe escapasse isso, mas preferia comigo acentuar os bons hábitos que vencem os menos bons, aconselhando-me a agir, pois que é no ato que nos formamos e, sobretudo, nos transformamos. O meu ato foi transformar-me em médica, esposa, mãe...derrotada, vencida.
Durante estas rememorações nunca me perguntou pelo Carlos, o que estranhei bastante. Não se recordava ele do meu namorado que foi seu aluno e até um dos melhores? O namoro foi suficientemente público, a um olhar atento como o dele não escaparia isso com certeza. Porém, não perguntou.
Diário de Carlos
5.07.
Sabia os anos, os meses e os anos em que estávamos casados, mas nunca percebi se realmente fui amado. Talvez porque não saiba avaliar se a intensidade do afeto prolonga a duração do amor, nunca prestei atenção. Quando a doença dela se revelou, fatal, inexorável, o cancro no útero, definitivo, implacável, não desprezava um minuto sequer da minha companhia. Porém, anos a fio, meses, dias, noites, não senti a sua presença. Simples desatenção minha, indiferença? Hoje compreendo-me um pouco melhor. Presumo. E não gosto do que vejo. Não sei que defeito, que tara é a minha que me fez assim como sou. Ou como fui. Só amava quando sentia perder o amor delas. Amei-a logo que a perdi. Traí-a vezes sem conta, de facto ou em pensamento, e ela? traiu-me ela por mera vingança? Se foram paixões dissimulou-as bem. Eu mal dissimulava as minhas. Lia-me nos olhos o brilho vivaz de um novo entusiasmo. Seguia-me os passos, vigiava os meus encontros, exigiu na vez primeira que me apanhou em flagrante que confessasse à amante que não a amava e que tudo não passava de um flirt, ameaçou-me com o divórcio, um divórcio litigioso, acedi, porque receei perdê-la e da pior maneira e admirei – o meu egoísmo admirou – o seu amor resistente. Poucos anos haveriam de passar até me trair ela. Depois disso foi a caminhada juntos e separados, em cada encruzilhada ia cada um para o seu lado. Não sei se me arrependo, se me culpo. Não somos livres, afinal? Culpo-me mais a mim por ter atraiçoado a sua confiança do que a culpei a ela. Cheguei a uma idade em que não se pode mentir a si próprio. Falhei no amor porque nunca lhe fui leal (devia dizer: vos, a vós), atento, obediente, fiel até ao sacrifício. Não, nunca sacrifiquei as minhas escolhas, os meus gostos, as minhas paixões, a um só amor, a ela mesma. Aos flirts, como ela lhe chamava, ainda menos. Não sei contá-los, não foram assim tantos, há gajos que somam centenas, e gajas também. Para mim não são números, troféus de caça. Lembro algumas mulheres é verdade. Não todas, o que é curioso. Caso extraordinário: mal recordo paixões assolapadas por mulheres que me poderiam ter oferecido um amor seguro, domesticado, recordo uma jovem mulher, uma moça de vinte anos, que nada me poderia oferecer e garantir! A vida é um enigma. A minha pelo menos. Se fosse filósofo como o velho prof. Ramos diria que não soube decifrar o oráculo. Pergunto-me se não sou um Édipo – um pequeno Édipo – com um destino traçado. Uma tara herdada. Não tenho filhos. Ao menos não a transmiti.
Não lavo as mãos convulsivamente. Verifico, é certo, duas, três vezes, a torneira do gás para ver se está fechada, quando saio. Tomo o meu Valdispert 125 quase todas as noites. Assusto-me quando o coração ameaça uma arritmia. Desperto pela manhã com más recordações e mau humor. Quando uma insónia me assalta em plena madrugada, no silêncio tenebroso da solidão, é a ela que eu vejo ao meu lado. Morta. Roída pelos vermes. E apetece-me pegar no carro e mergulhar na noite.




DIÁRIO DE CARLOS
20.07.
O arquitecto é um artista, não é um industrial mas um artesão no mais genuíno sentido da palavra. O seu traço. O seu desenho. A sua maqueta. Objectos estéticos. É um artista plástico, ainda que utilize a máquina do computador. O engenheiro, o engenheiro de pontes, por exemplo, é um técnico, um produtor industrial, raramente é um artista. A racionalidade que utiliza é uma razão instrumental. O seu critério é a eficiência, não é a beleza. Se a ponte que calcula é bela o seu pensamento liberta-se dos tampões da razão instrumental, das limitações que o orçamento e os outros colaboradores lhe impõem, transcende a técnica, é um criador de formas que provocam admiração, surpresa, e turismo... É raro nas engenharias puras. Existem modestas pontes de madeira que são obras de arte, o transeunte sente-se obrigado a parar, a contemplar, como a belíssima ponte que dá o título e é o leit-motiv do inesquecível filme de Clint Eastwood, As pontes de Madison. Para não falarmos das pontes antigas, clássicas, como a de Santo Ângelo, em Roma, ou a ponte Vecchio, em Florença, a mais bela do mundo, falemos das mais recentes, como a Python Bridge, em Amesterdão, uma delícia. Tenho visto documentários filmando a construção de grandes pontes, na China principalmente, a mais comprida do planeta ao sul, embora não sejam feias de modo nenhum, porém o que admiramos, sobretudo, é a resistência aos tufões e aos terramotos, a eficácia para os fins em vista, a maravilha técnica e a monumentalidade, a construção modulada por computadores. São emblemas da técnica, sofisticados avatares das várias revoluções industriais. Quantas delas constituem objetos de arte? As pontes sobre o rio Sena são obras de arte mas uma ponte sobre o rio Douro não o é? Para mim a arte distingue-se da técnica, ainda que sem esta não haja arte. A técnica é um saber fazer, a arte é um fazer sentir. A primeira é um objeto de uso, a segunda é um determinado uso de objetos. Normalmente as pontes são sólidas, principal ou mesmo única preocupação, raramente se querem esbeltas, elegantes, provocativas. Eu não sou engenheiro de pontes, sou arquiteto, por isso não me contratam para a construção de pontes, mas para a construção de edifícios. O mérito do Vasconcelos, do chefe do nosso gabinete, foi haver conseguido que o governo regional nos convidasse. O governo central não o teria feito, um consórcio de privados talvez, mas dificilmente, o primeiro quer exclusivamente poupar nos custos, o segundo quer exclusivamente extrair o máximo lucro. A criação de Regiões, de governos regionais eleitos e autónomos foi um grande passo, as comunidades participam, discutem, referendam. O Vasconcelos soube jogar nesse tabuleiro, introduzir-se no jogo, convencer as comunidades. Os engenheiros constroem agora a ponte, nós, os arquitetos, eu especialmente, desenhámo-la. Todos os longos anos em que trabalhei construí casas, não sei se alguma ficará para a história, pontes nunca pensei vir a desenhar. É por essas razões que a minha ponte é minha, o projeto da minha vida. Amo-a como amaria um filho, sem reservas, sem condições. Nunca me tomei como um artista, esta é a minha oportunidade, a primeira e espero que não seja a última.
Quando namorava a Carla pedia-lhe opiniões, sugestões. A Carla era a espectadora ideal: imaginativa, sensível, intuitiva, sem conhecer escolas e correntes, liberta de preconceitos académicos, quase ingénua na sua inexperiência de vida. E sincera, principalmente sincera. Tenho saudades dela. Daquele olhar limpo, daquelas delicadas mãos que sabiam criar coisas e prazeres. Quando vejo a ponte a erguer-se dia após dia apetece-me telefonar-lhe, convidá-la, mas não, não me atenderia sequer, cortou toda e qualquer comunicação comigo. Radical. Fez-se morrer para mim, matou-me para ela. Que saudade do seu corpo ligeiro, digo: ligeiro, brisa marítima, espuma, ardência…
Quando pego neste diário é para escrever ora sobre a minha ponte, ora sobre mulheres. Vejo a minha sociedade a desmoronar-se, a guerra civil a chegar, e não escrevo sobre isso…Quando me atingir, irei desabafar com toda a certeza. Escrever ajuda a fixar, sim, mas também a enxotar o medo.
Diário de Marta
13.07.
Sempre que visito a Gisela na sua campa, para substituir as flores, para rezar por nós ambas, por ela para que possa brincar eternamente no lugar onde estará, por mim para que Aquele que nos observa tenha misericórdia da minha miserável condição, sempre que a visito culpo-me por aquilo que não fiz, censuro-me pelo horror que outro cometeu, choro convulsivamente e lamento não estar ali em vez dela. Regresso ao trabalho e ocupo-me desesperadamente.
As revoltas, a revolução ou lá o que chamar a estas convulsões que abalam a sociedade toda…A greve geral paralisou ontem o país, as manifestações sucedem-se nas ruas, Lisboa é um pandemónio, até esta cidade onde resido não foge à regra geral, protestam os funcionários do Estado, os operários, os professores e os estudantes, os enfermeiros e os médicos, os motoristas e os agricultores…O governo já não tem mão em nada e até eu sinto a mesma vontade de gritar qualquer coisa contra qualquer coisa, a mesma que sentia quando era estudante, quando era adolescente, quando saía daquelas aulas do professor Ramos que me deixavam a cabeça a escaldar.
Para onde vai este país não sei, por agora está na bancarrota, a urgência do hospital funciona porque não brincamos em serviço, há dias em que os feridos pelas escaramuças entram em filas ininterruptas, sem nos darem tréguas, se não vou para a rua gritar, cuido dos que gritam, o mundo está cheio de dor, mas a dor do mundo não diminui a minha.
No serviço de urgência passei ontem uma noite calma, para iludir as noites em que parece que o mundo desaba todo ali, nas camas a abarrotar, nos gritos lancinantes, nos murmúrios de quem já não tem forças para gritar, nos pedidos urgentes (todos eles têm sempre pedidos urgentes), nas confissões que eles nos fazem como se nós substituíssemos os padres (imploram a Deus mas somos nós que acorremos), naqueles sons inconfundíveis de uma sala de observações: as respirações ofegantes, entrecortadas por silêncios prolongados que nos obrigam a olhar para os monitores para ver se mais algum morreu. O que é a Vida? Sofrimento.

NARRADOR :José Augusto Ramos Duarte é um professor do ensino médio ou secundário, tendo lecionado no ensino superior politécnico nos últimos anos antes da sua aposentação. Lecionou filosofia e psicologia quase quarenta anos com algumas interrupções.Nos primeiros anos gostava de ensinar a filosofia de Demócrito em contraste com a de Platão, o materialismo e o idealismo, classificações que ele se esforçava por explicar aos sues alunos e que eles pareciam compreender com mais facilidade do que o tema "Racionalismo /Empirismo" a que se viu obrigado muito mais tarde quando os programas escolares foram revolucionados para trás,e passo a contradição.O professor Ramos nunca foi um indivíduo dotado de ambição e daquela determinação que leva os ambiciosos a alcançarem sucesso no que projetaram para as suas vidas. Preferiu ler muito, refletindo nos grandes autores que admirava, do que ser capitão-general de qualquer exército...Daí que ele não saiba ao certo se falhou, se acertou, se se iludiu e foi ingénuo ao ponto de ter sido estúpido, o que sucede frequentemente com quem é inteligente.

Diário do professor Ramos

5.07.

Há anos que não pegava no meu diário. Houve um tempo, longo de resto, que escrevinhava furiosamente ao serão, relatando, criticando, analisando, o que sentia, o que observava, a cada dia, um exame de consciência, nem sempre consciente, um julgamento não poucos vezes auto-complacente, raras vezes alegre, frequentemente pessimista e lembro-me que esse hábito, ou vício, começou, se não estou enganado, se a memória não me atraiçoa, durante, ou logo depois, a queda, o desmoronamento do chamado mundo socialista. Se existiam dois mundos, ficou só um, a menos que, afinal, os mundos fossem vários. Não me senti órfão, senti-me desiludido, como se um cansaço indefinível, insidioso, chegasse inexoravelmente após muitos anos de enérgico combate. Não desisti, porém a resistência já não era a mesma, nem no vigor, nem na crença.
Retomo estas páginas do meu diário, desperto o que estava adormecido, provavelmente porque tanto a Marta como o Carlos me confessaram que redigiam os seus diários. Foi aproximadamente com a idade deles que também iniciei o meu, para mais tarde o interromper. A certa altura, creio que foi isso, descobri, ou fizeram-me descobrir, como podem ser comprometedores os diários, sem que necessariamente confessem crimes ou vícios inenarráveis, bastam as confissões, as interrogações, os dilemas do coração ou do espírito, os equívocos que provocam em quem os possa vir a ler. Por isso deixei de escrever e tenciono não repetir. Um diário ou é estritamente confessional, pessoalíssimo portanto, e então deve ser destruído, lançado às chamas no dia seguinte, quando o sol ilumina a consciência, afasta as trevas da noite, ou, então, um diário deveria constituir um verdadeiro exame racional do irracional, um tribunal da razão destemperada, um julgamento das ilusões e das quimeras, a cicatrização das feridas, um triunfo do juízo sobre o desespero. Os Pensamentos de Montaigne ou de Pascal.
Esforçar-me-ei para que seja uma arma de combate contra mim mesmo, mais do que um estado de alma.Não sou Pascal nem Montaigne, nem conheço ninguém que o seja.O que é verdadeiramente profundo e decifra mistérios ao mesmo tempo que revela outros mais fundos,essa tarefa é cada vez mais do encargo da ciência. E os astrofísicos,os biólogos, não escrevem como Montaigne.Não duvidam do que fazem.
O meu país, a minha pátria, sofre de uma doença grave e antiga: tem sido espoliado por uma minoria que conseguiu sempre submeter o povo trabalhador, ludibriá-lo, amedrontá-lo por todas formas. No já remoto ano de 1974 surgiu um interregno, viu-se a força que as classes do Trabalho transportam adormecida, porém essa força foi depressa derrotada. Contudo, estou agora surpreendido: ainda há pouco tempo o povo, o chamado povo, se mostrava tão alheado da política, tão submisso e, quase de repente, depois de um primeiro disparo, solta o freio, sacode as palas, ergue-se como um ginete furioso,quer ser livre de novo, e já o é porque se insurge. Estou espantado. Nunca se saberá explicar quando uma simples gota de água faz transbordar um copo, como naqueles dias e noites do mês de Agosto de 1789 em Paris. Ou no decurso de 1917 em São Petersburgo. Ou 1974. Um ato de desprezo de governantes inaptos, um discurso provocador, uma brutal carga policial, um imposto impopular, um fósforo para cima de um monte de palha? Ou uma combustão lenta que se faz subitamente viva? Um encadeamento de causas? Aquela metáfora do filósofo Hegel da velha toupeira que vai lentamente furando o solo até que um dia – a quantidade gera a qualidade- pumba! Lá tomba o que parecia eterno.
A derrota.À festa das revoluções populares segue-se sempre a crucificação. O meu país foi vendido pedaço a pedaço. Quem produz a riqueza das nações são os trabalhadores, não são os accionistas. Mas são os banqueiros que ditam as leis aos seus deputados. O povo anda a pagar dívidas que não convém que tenham fim. Agora, espezinhado de dentro e de fora, acordou finalmente! São operários, empregados do comércio, funcionários públicos. A pequena burguesia assiste, sempre oscilante. Já uma parte se inclina, vejo eu, para as tristemente famosas soluções que reponham a ordem e segurança, é sempre assim. O populismo entra em cena com as velhas e sempre eficazes atoardas contra a corrupção da "classe política", o descrédito dos parlamentos, os crimes, a insegurança, os medos. Os deputados e os ideólogos fascistas agitam ódios e bandeiras, despertam das catacumbas,insultam  impunemente nas redes sociais e nas televisões, nas tribunas das universidades. Não se assumem como nazis, deixam isso para os arruaceiros pagos a soldo ou simplesmente drogados que já se atrevem a reunir-se em assembleias que as televisões vão logo a correr filmar. Mas os membros das elites reacionárias que pulula nas universidades, nas televisões e nos jornais, académicos, advogados poderosos, não fazem saudações fascistas, são espertos os sacanas, até  dissertam sobre a democracia sem corruptos e a augusta soberania da pátria portuguesa.
Quem vencerá? Retomei a minha energia, escrevo para uma revista que um grupo de correlegionários fundou. Tomo posição frontalmente pela revolução socialista contra a mentirosa «revolução» fascista. Ofereci a casa para uma reunião de militantes revolucionários e já se fez essa e mais outra. Propus e agora colaboro na redacção de um manifesto com a explicação dos objectivos pelos quais todos devemos lutar unidos, ou seja: todos os que querem mais e melhor democracia real e não formal. Vamos distribui-lo aqui, na região. Um texto unitário. Precisamos de unidade. Uma distribuição modesta: apenas aqui nestes bairros, talvez alguns professores o façam circular nas escolas. A ver vamos. A hora das grandes decisões está a soar. Toca a reunir!
 Temos de nos acautelarmos com as tácticas dos fascistas; quero dizer que hão de lançar fogo ao parlamento, se preciso for, como fizeram os nazis, ou um dos muitos estratagemas clássicos dos golpistas e conspiradores da extrema-direita, os tipos de violência civil ou paramilitar que eles costumam executar para provocar o caos e a insegurança. É com a desordem que emergem os salvadores.
DIÁRIO DE MARTA
6.07.
A última conversa com o professor Ramos fez-me despertar muitas recordações de há vinte anos atrás. Neste instante em que escrevo são 11 horas da noite. Esta semana o trabalho tem sido muito no hospital, ando estafada, os choros e os gritos dos doentes, o ruído do trânsito caótico nas ruas e da multidão aos gritos, ando tão estafada que já não me excitam os nervos. O exterior aparece-me filtrado por um nevoeiro, há uma sensação de letargia no meu corpo que, todavia, não me impede de ser minuciosa no trabalho. Ou mecânica. Uma parte de mim cerrou a porta e as janelas. Sou uma casa meio habitada, ou mal habitada. Sei que é uma estratégia de autodefesa, por isso deixo-me andar assim. Há vinte anos agia rapidamente por intuição ou por impulso. Uma palavra estúpida de um colega, um piropo grosseiro (era habitual o «Ó Marta, dá-me a tua rata!»), deixava-me em fúria, voavam livros e às vezes bofetadas. Era um animal feroz. O meu comportamento irreverente, a minha maneira de vestir, o convívio liberal na associação de estudantes, provocavam nos energúmenos a confusão entre o ser liberal e libertina, os militantes da direita eram os piores, os preconceituosos, armavam-se em machos-alfa e não me largavam as canelas, machistas. Uma das cenas fortes do meu namoro com o Carlos - tão bem me lembro!- foi quando ele aplicou uma cabeçada numa dessas pestes. Pobrezito do Carlos, sem ninguém se aperceber, ficou mais machucado que o outro…até não foi às aulas no dia seguinte. Deve ter sido a mãe que cuidou dele. Os pais eram burgueses ricos, não sei se muito, mas bastante. Fui almoçar a casa deles – uma bela mansão em Mafra que já tinha mais de cem anos! - Receberam-me educadamente, acho que apenas educadamente. Nessa tarde, fim de tarde, fizemos amor e lá se foi finalmente a virgindade. A minha, a dele não sei. Havia pedido emprestado o carro ao pai. A partir desse dia aquele sítio era o nosso preferido. Mesmo no topo de uma colina que ninguém frequentava, onde viriam a instalar aqueles moinhos eólicos. Enfim na associação de estudantes fizemos coisas giras. Certa ocasião organizámos um Dia da Paz, quando se viveu com grande e geral emoção o desenrolar da custosa independência de Timor Leste. Chamámos uns tantos representantes das diversas igrejas e filósofos, e houve uma sessão de teatro pela Companhia de Teatro de Almada, que aprecio imenso esta companhia, já não vou lá há que tempos, tenho muita vontade de ir. Bem, já começo a sentir vontades…
DIÁRIO do professor Ramos
10.07
Tem sido agradável reencontrar o Carlos e a Marta. Não foram os únicos antigos alunos que me reconhecem, o que é um privilégio, uma gratificação; estes dois, contudo, visitam-me, o que não sucede frequentemente é claro, por vezes alguém me descobre na internet, envia-me um email, uma mensagem no facebook, é uma recompensa para mim dos anos duros que também atravessei, encontro-os casualmente aqui ou ali, neste ou naquele emprego – algumas ao balcão de lojas e supermercados!- ou dizem-me que são professores, advogados, médicos… Numa viagem que fiz à Polónia veio cumprimentar-me uma antiga aluna à entrada do campo de concentração de Auschwitz…Incrível!
O Carlos é um caso à parte. Pertence àquele escasso número dos que me visitam, com quem tomo uma bica e ficamos à conversa e assim fomos consolidando uma amizade sem hierarquias. Se ainda sei fazer contas ele deve andar aí pelos quarenta anos de idade. Sempre se portou comigo com aquela amizade não desprovida de respeito que nós mais velhos merecemos. E a Marta, que idade terá? Perto da do antigo namorado com certeza. A coragem que esta demonstrou ao visitar-me na minha própria casa, depois de um primeiro encontro numa livraria de Lisboa, deixou-me surpreendido, depois percebi que ela transporta uma insuportável dor, ainda não descortinei a causa, provavelmente não encerrou ainda o luto pelo divórcio. É a única coisa que verifiquei, que o casamento dela se desfez. Nem sei com quem. Contudo, a tristeza parece mais profunda do que se tratasse de um desenlace. Não sei. Recordo cenas dos anos em que foram meus alunos os dois. Há acontecimentos que não recordo, sinto que há lacunas, clareiras na memória. A Marta era muito ativa na Associação de Estudantes, julgo até que foi presidente. O Carlos acompanhava-a em algumas atividades (um Dia para a Paz, a propósito da tragédia do povo de Timor Leste) mas ele nunca se mostrou muito militante fosse do que fosse. Era mais artista - desenhava muito-, embora nas nossas conversas posteriores ele insista que é todo pragmático, isto é, prático. Não, não é. Ou é apenas o suficiente para perceber do ofício de arquiteto. E é dos bons. Precisamente porque imagina muito e calcula bem antes de passar à prática. Aquela célebre comparação que o Velho Marx utilizou Marx, que me vem à memória, a diferença entre uma engenhosa abelha e um medíocre arquiteto. Este será sempre superior, porque constrói a obra primeiramente na cabeça, isto é, planeia…Claro que o Carlos é um bom arquiteto e daqueles que conhece bem os materiais e a sua resistência. Vê-se pela ponte belíssima que ajudou a construir, que está quase pronta contou-me. Tenho que me dispor a ir vê-la. O plano dele, o desenho, foi aprovado pelos engenheiros e isso quer dizer alguma coisa.
Tenho de sair mais vezes. Agora com as reuniões clandestinas, ou quase, que aqui se fazem, ainda saio menos. Ontem elegeram-me para um Comité revolucionário da Região do Oeste! A luta está a ficar muito séria e muito perigosa. Sinto-me adoentado, qualquer coisa não corre bem comigo, mas vou à luta. Os fascistas não podem amedrontar-nos. As provocações e a violência já está instalada e vai crescendo de dia para dia. Com slogans populistas - «Abaixo os políticos! Morte aos corruptos!»- sequestram deputados e ministros, atacam esquadras, assassinam dirigentes sindicais. Isto não vai ser uma guerra civil: é já uma guerra civil!
DIÁRIO de Carlos
27.07
Já adivinhei que a Marta se encontra, ou se encontrou, com o professor Ramos! Nada perguntarei até ele mesmo mo dizer. Se não mo disse ainda, lá terá as suas razões. Respeito. Quando ele achar que é oportuno um encontro dos três, ele mo dirá.
Ando animado com a construção da minha ponte. Vai-se erguendo como se tratasse de uma tela impressionista, pincelada a pincelada, cor sobre a cor, até o objeto a duas dimensões adquirir profundidade e se converter numa coisa viva que nos contempla.
Andar entusiasmado não é coisa rara em mim. Entusiasmei-me com mulheres, com edifícios, com viagens. De paixões é que fujo como o diabo da cruz. O que não quero é perder o controlo. Já basta a pouca estima que tenho pela minha pessoa. Se tivesse confiança em mim e muita determinação teria já feito mais e melhor. Tenho uma absoluta necessidade de controlar a minha vida. Não faço tudo por cálculo, menos por perdas e ganhos, por vezes o salto foi maior que a perna. Mas detestaria sentir-me um falhado, um fracassado, um joguete nas mãos do destino, ou lá o que seja que chamemos ao acaso, ao desejo impulsivo. Por isso temi sempre as paixões. E talvez por causa disso haja perdido todas as mulheres que julgo terem-me amado. Não me resigno: como ainda não sou velho, novas revelações surgirão.
 O meu primeiro amor deixou-me remorsos.
Volto  a recordá-lo. Deve ser a idade que vai aumentando! E lembrar o primeiro amor é lembrar o segundo de tão próximos, coincidentes, que foram, ou são: a inglesa no Algarve onde os meus pais “iam a banhos”: a iniciação sexual. A primeira loirinha, sem a timidez virginal da Quina, de lábios delgados à inglesa mas boca fogosa, apta para me ensinar. Idades idênticas, e foi ela a professora. Quina era o nosso desejo ainda inocente e reprimido, Mary, o forno já aceso. E ainda se diz que as inglesas são frias…
Depois veio a Marta. A inteligência fulgurante num corpo razoavelmente bonito, a energia juvenil, quase maria-rapaz, uma personalidade rebelde. Era magra em demasia, escorreita, as pequenas mamitas que apenas pediam atenção quando envergava umas tschirts com o umbigo ao léu.  Naquela idade eu ficava tonto era com as beldades, sobretudo quando exibiam, sinceramente ou não, uma atitude tímida (que tolices!) por cima de um soberbo par de mamas. A Marta não era nada assim: bonitinha, isto é, um rosto com linhas femininas corretas, umas pernas sólidas de ginasta e uns olhos com um brilho luminoso. Sim, eram os olhos a arma com que fulminava os estudantes direitistas nos plenários e com que me enlaçou com uma corda. Ou fui eu? Ela diria que fui eu. Procuro diferenças flagrantes entre elas e nós, fêmeas e machos, mulheres e homens, e não as vejo. Pensamos no mesmo, desejamos o mesmo. Saúde eterna, alegria permanente, e os meios para conseguir isso.
Seguiram-se outros encontros sucessivos com aquilo a que os romances e o cinema chamam Amor. Eu chamo-lhe sexo. Amor somente os sentimentos de uma mãe pelos filhos. E nem sempre. A minha mãe nunca foi carinhosa nos gestos. Nunca me fez uma carícia demorada. Não duvido que amasse. Saber amar é que é duvidoso. Fez-me muita falta esse mimo. Não basta amar, sim, é claro. De resto, o que é? Um único sentimento? Uma combinação certa de sentimentos? Acompanhada de gestos congruentes? Vi mães a espancar os filhos; no entanto, estes viu-os bem vestidos, bem nutridos...Homens enlouquecidos pelo ciúme, pelo despeito de machos recusados, assassinam a cada passo mulheres: isso é amor?
Não seduzo as mulheres premeditadamente. A bem dizer, nunca me interessaram técnicas de sedução. Tudo casual e aparentemente aleatório. Fossem elas numerosas num salão, e era apenas uma que me despertava o desejo, e isso irrompia ao primeiro olhar. Uns olhos do meu agrado, uma determinada cor e textura do cabelo, umas pernas fortes mas femininas, e uns pés, ó sim! Um quase feitiço pelos pés femininos…O mais era a singularidade, aquele composto, ou todo, que torna único o ser humano. A conversa confirmava ou não.
 Com as mulheres perdi em todos os tabuleiros. O namoro em acabado quase sempre em desastre: ou desapareço subrepticiamente, sem tocar alarmes, ou as namoradas confessam ("confessar" já é algo que actualmente custa dizer, a menos que o homem também se confesse) que surgiu um terceiro e eu fico a mais. «Gosto imenso de ti, tu és (um rol de elogios)…mas estou apaixonado por outro!» Ou, «descobri que não fazes o tipo de homem que me atrai!».  Como aquela professora de artes que me provocou um desejo torrencial e que se revelou negativa, infeliz, por debaixo de um excesso teatral de sensualidade (como era o seu nome?). Não gosto de perder o autocontrolo. Nesse caso e em outros mais, perdi-o. Obcecado por todas as superfícies do seu corpo, desesperado, não consegui convencê-la. Com a Cristina sucedeu outro tanto. Dizia ela: «Se permitir que tu me apalpes determinadas zonas, é claro que que eu excito-me e faço aquilo que não queria fazer! É da fisiologia!". Boa. A professora diria o mesmo se tivesse sido capaz, pela sua neurose, de verbalizar os seus conflitos. Como eu as compreendo agora: basta que elas me acariciem, salvo se forem feias e muito gordas.
 E com essas frustrações irracionais, esse fascínio tolo que a mera epiderme de outros exerce sobre nós, fico a reflectir sobre a eterna inteligência do filósofo Platão que há tanto tempo, mas como se fosse hoje, quis convencer-nos que um sentimento puro jamais se poderia conservar, e até apoiar, sobre a perenidade de uma carne que todos os dias morre um pouco…Por isso, o Amor (com maiúscula) não podia ser um mero sentimento, assim impossível, mas uma Ideia…Outro pretexto para me lembrar do professor Ramos. O filósofo grego, porém, conduziu, provavelmente não era esse o seu propósito, à moral repressora da carne, e não me serve de guia. Melhor do que ele, para isso, é o romance de Thomas Mann, “A Montanha Mágica”. Li-o quando era jovem e permanece. Nesse romance inolvidável está magnificamente exposto o discurso da epiderme, essa fonte de todo o erotismo, esse tecido superficial, de milímetros, pelo qual todas as fantasias perversas ou grandiosas se levantam.
Não possuo explicações para tudo como os filósofos. Julgo saber alguma coisa mas sou incapaz de dedicar semanas a investigar um assunto teórico nas bibliotecas onde sofro de claustrofobia. Além disso fumo. O prof Ramos acha que não, que eu tenho uma inclinação para as meditações.
Por que razão decidi isto ou aquilo? Normalmente sem razão nenhuma. Apenas por causa de uns determinados (puramente concretos e não teóricos) olhos…Umas pernas bem torneadas, umas axilas, imagine-se! Umas simples concavidades que me deixam ofuscado como a traça por um foco luminoso! Guardo fotografias das axilas da Sílvia, a última mulher a atrair-me até este momento. Da Carla tenho nas paredes da sala desenhos dela que lhe fiz. Da Marta, algumas fotos apressadas, do Encontro Para a Paz, e uma, apenas uma, pessoal: está ela ao cimo das escadinhas da praia do Seixo (foi aí mesmo que, à noitinha, explorei com a mão a sua vulva e comentei: não parece que sejas ainda virgem! ela retorquiu com acerto: «E se já não for, isso é importante assim?». Fiquei envergonhado e perdi a erecção.
Se me arrependo de algo é de não ter sido mais atrevido, mais teimoso ou simplesmente arguto. Quantas oportunidades desperdiçadas de amores que eram oferecidos em bandeja e eu não vi! Lembro-me de duas lindas moças que, separadamente, me confidenciaram que já não eram virgens e eu não entendi a proposta…Ingenuidades destas roçam a estupidez.
E lá estou a escrevinhar sobre mulheres. É obsessão. Lá fora mata-se já e morre-se. Se eu trabalhasse numa grande fábrica seria diferente. Ainda existem grandes fábricas?


Diário do professor Ramos
15.07
Agora que estou aposentado, nestes anos sem a adrenalina das aulas com miúdos travessos, nem quero recordar e menos registar aqui os casos mais penosos que atravessei, agora que estou retirado penso ainda mais na minha vida passada do que alguma vez pensei, eu, que sempre fui de cogitações, de exames de consciência, de perfeccionismo moral frequentemente inflexível (há muitos, muitos anos, era ainda um professor noviço, recusei receber em casa um senhor que se apresentou como pai de uma aluna – numa breve troca de palavras pelo intercomunicador do prédio – que me trazia um peru (imagine-se: um peru!) pelo natal, e eu recusei, o ano escolar ainda nem a meio estava, não lhe disse mas pensei «Subornos? Nunca!») quase intolerante, sem às vezes distinguir o bem intencionado do mal intencionado, mas realmente provoquei situações ingratas que poderia ter facilmente evitado, simplesmente gabava-me a mim próprio de ter a consciência limpa, impacientava-me, tornava-me mesmo irascível quando me dirigiam uma insolência, uma ameaça, era raro, mas sucedia, fui aprendendo alguma coisa, mas pouco, que o temperamento não muda, somente com a velhice o corpo já receia os confrontos físicos, tem que ser, o contrário seria uma perfeita estupidez; agora que me retirei longe dessas lides diárias, para esta casa que o meu corpo mal habita, o silêncio que escorre pelos cantos da casa e da memória - as recordações são sempre silenciosas - as lembranças assaltam-me sem precisarem de estímulo algum, chegam, plantam-se na memória sem cor e sem ruído, tento afastá-las, arrumá-las nas gavetas, no baú, elas hão-de voltar, insidiosas, contumazes, pintadas de negro e sinistras.
Um bom amigo morreu, pouco mais de meia dúzia de meses antes estivemos a conversar ali naquela esquina onde passei hoje, ao pé do cemitério, há uma praceta agradável, um café e um quiosque onde compro o jornal, éramos ambos aposentados, o tempo todo por ocupar, seria mais uma boa conversa das que costumávamos ter, num café, na rua, nas salas de reuniões, guardava sempre uma anedota no fim para contar como só ele sabia contar, dos raros seres que me fazia rir às gargalhadas, é difícil arrancarem-me uma boa gargalhada, dessa vez não contou nenhuma, disse-me que andava incomodado com uma espécie de irritação na garganta, julgava ele, tinha consulta marcada, iria saber o que era, interrompi-o com ligeireza «É com certeza uma inflamação, toma qualquer coisa contra isso», adiantou mais pormenores «Não, deve ser mais do que isso, incomoda-me engolir, perdi mesmo o apetite, emagreci…», «Não se nota que estejas mais magro, não te preocupes, suponhamos o pior, uma úlcera, até mesmo aquilo que tu sabes e eu não quero nomear, e não quero porque não creio que o tenhas, mas suponhamos que era isso, na garganta ou no estômago, estava no início, irias perfeitamente a tempo, conheço um indivíduo, enfim, tenho um amigo, a quem retiraram um bocado do estômago e anda aí mais fresco que nem uma alface…», fui dizendo e acreditando no que eu próprio dizia, nem por um instante me passou pela cabeça a hipótese dele sofrer de um cancro. De vez em quando telefonava-lhe. Por ele próprio soube que era cancro. Deixei de o ver, por fim já sabia as notícias por terceiros, antes da operação telefonou-me «Sinto-me bastante melhor, o tratamento está a resultar». Abriram-no e voltaram a fechar. A última conversa que tivemos foi ao pé do cemitério onde estás enterrado, ironias do destino. Adeus amigo. A vida? É a duração de tempo que um organismo consegue resistir à morte.

DIÁRIO DE MARTA
29.07
Carpe diem. A convite da Carla, para festejar o aniversário dela, encontrei-me com ela e com uma meia dúzia de amigas e amigos dela, nova geração, jantámos no Parque das Nações, no Rei da Cerveja, creio ser este o nome do restaurante, saíamos de lá bem bebidos, já a manhã nascia quando saímos de uma discoteca famosa nas Docas, não me apercebi de qual dos amigos dela era o seu namorado, se calhar porque eu não parava de beber. Um deles, um rapaz de longos cabelos negros e barba curta agradou-me, fez-se a mim com um atrevimento que me seduziu, e no dia seguinte quando os vapores do álcool já se tinham evaporado da minha cabeça, fiquei a pensar nele, mas apercebi-me então que ele largava a Carla para se chegar a mim, e largava-me para se chegar à Carla. Enfim, a confusão dos corpos era demasiada para se distinguir fosse o que fosse. Ainda por cima ainda lá estávamos quando soubemos que lá fora andavam indivíduos aos tiros uns aos outros. No regresso a casa deparei-me com carros incendiados e polícias a rodos. Dois dias passaram. O rapaz prometeu telefonar-me. Sinto-me infantil com esta ansiedade pueril. Será que me telefona?

DIÁRIO DO PROFESSOR RAMOS
29.07
Ando ansioso por um telefonema da Marta, os nossos encontros têm sido uma aragem de ar fresco, é encantadora, aquela tristeza cuja causa ela oculta atrai-me, os seus olhos castanhos quentes e doces onde por vezes ainda faísca a rebeldia que a tornava tão singular nos tempos de estudante liceal, aqueles tiques que denunciavam a sua natureza insubmissa, conserva uns lábios carnudos que deveriam ter sido uma delícia para o Carlos de então, não sei a razão por que se separaram, afinal ela tinha tudo para agradar, ele era mais discreto, distanciava-se dos choques entre pessoas e ideias, uma outra forma de inteligência, menos idealista, menos impulsiva. Marta é agora uma mulher madura que não se interessa minimamente por parecer sensual. A idade roubou-me o atrevimento, mesmo assim vou arranjar à vontade para lhe telefonar mais vezes, não estar à espera que ela o faça. Escolhi o isolamento mas detesto a solidão. Durmo pouco e mal. Prosseguem as reuniões em minha casa. Alguns dos camaradas são excelentes pessoas: sem ponta de vaidade, dedicadas, honestas até à medula. Outros não sei, alguns não me agradam, não confio neles. No passado, na minha vida passada, foram camaradas os meus piores inimigos.Todavia, sem os bons não posso passar.Sem a camaradagem genuína. não a da fábrica que não experienciei, mas das lutas contra os mesmos  adversários,aqueles que nos odeiam porque queremos eliminar as fontes do seu poder.É ainda uma expressão bonita, já foi bela e há de ser novamente.
DIÁRIO DE CARLOS
25.08
O Vasconcelos anda muito satisfeito comigo. O negócio da ponte correu bem para o escritório. «Agora é não parar ó Carlos!», disse-me ele com um sorriso de orelha a orelha. Até parece que se esqueceu que estamos numa crise sem fim à vista. O país à deriva e um mercado que anda encolhido e temeroso.
Uma, duas vezes, por semana, visito as obras da ponte, apesar de confiar no engenheiro que é tipo fixe e competente. Gosto de ver as coisas a andarem e ele próprio escuta bem os meus conselhos.
Trabalho duramente, acho que nunca me dediquei tanto como agora. Ando motivado. Cheio de ideias para novos projectos. Trago na cabeça um que me apaixona: o edifício para um Centro de Cultura, o Vasconcelos não me desanimou, «Ó homem, vamos em frente, em frente é que é caminho!». A Câmara Municipal vai abrir um concurso. O Vasconcelos foi logo lá ao sítio meter uma cunha, contra a minha vontade, mas ele é assim. Vou fazendo esboços. Não quero ver nada de outros para não copiar, copiamos até inconscientemente. Um Centro onde qualquer miúdo possa aprender gratuitamente qualquer que seja a arte: música, dança, teatro, artes plásticas… A Câmara pretendia inicialmente uma finalidade exclusiva: música, criar uma filarmónica juvenil. Uma boa ideia, entretanto contrapus que o edifício poderia albergar outras finalidades. Estão a discutir o orçamento. E eu vou sonhando. Tornei-me um sonhador. No estado em que vai estando o país, pode ficar pelo sonho do sono.


DIÁRIO DE MARTA
2.08
O Nuno telefonou-me! O amigo da Carla, foi longa a conversa, encadeava assuntos uns nos outros, tem cá um patuá! Espero que não seja desses casanovas de trazer por casa. Não, não parece. Ou sou eu que fantasio? Estarei já a idealizar? Mau sinal. Sinal de que estou a ficar envolvida. Que importa? Carpe diem. Deixei-o falar, gosto do som e do tom da voz dele, entre o atrevido e o ingénuo, tão jovem…é artista, pinta e realiza aquelas coisas a que agora chamam “instalações”, vi algumas, poucas, de outros, na galeria do Bártolo, da minha mãe e não entendi nada. Que verá em mim? É um homem bonitão, esperto, que sabe vestir-se com bom gosto, e eu, o que sou? Olho-me ao espelho e só vejo a ruína da juventude. Não obstante, sinto-me alegre, uma alegria de adolescente. Percebo. A vaidade de ainda atrair um jovem. Não me importava nada de lhe acariciar aquela barba negra…Que digo? Nem pareço eu. E censurei eu a minha mãe…É o meu corpo que desperta? Hormonas, progesterona, somos mais alguma coisa nestas ocasiões? Bem, não posso perder o tino! Ou posso? Ou devo?
DIÁRIO DO PROFESSOR RAMOS
2.08
A Marta não tem dito nada, interrompeu subitamente o contacto, estava sendo regular, de repente desapareceu, estará doente? Vou telefonar-lhe, estava a habituar-me a ela, agora mais do nunca precisava da sua companhia, fui fazer as análises de rotina e o médico encontrou qualquer coisa que não estava bem, franziu a testa, procurou tranquilizar-me mas foi avisando que era melhor um exame mais específico, se for do cólon como suspeitava, tenho de me sujeitar a exames. Não é justo para um tipo que atravessou tantas coisas más na vida. Agora que me aposentei para poder gozar de um repouso que nunca tive, vem mais este susto.
DIÁRIO DE CARLOS
30.08
Uma jornalista pediu-me uma entrevista. A minha ponte já começa a dar que falar! É para uma reportagem da RTP sobre novos arquitectos. Eu disse que já não era muito novo, ela riu-se do outro lado da linha, não faz mal, disse ela, novos também porque experimentam coisas diferentes, vanguardistas, a expressão é dela. O Vasconcelos tratou de colocar on-line o meu projecto e acho que falou com uns críticos e outros gajos importantes.
Anteontem fui beber um copo ao Bairro Alto e vi ao fundo da rua, pareceu-me ver, a Carla...olhei automaticamente para o gajo ao lado dela e vi um tipo jovem, com aquele aspecto de jovem artista inconfundível, no vestir, no cabelo agarrado atrás num rabicho...Fiquei imediatamente triste. Não ciumento, mas triste. Uma rapariga um pouco gorducha, olhava para mim enquanto fingia escutar um tipo também gorducho, olhava com uns olhos castanhos bonitinhos com muita gordura à volta. Pisquei-lhe o olho, sorriu, fiz-lhe sinal para lhe oferecer um copo, dirigi-me ao bar e no minuto seguinte ela estava ao meu lado. Uma hora depois espanejava-se no meu colo dentro do meu carro. Foi para me esquecer da Carla. Ficaram a doer-me os rins e as costas, a rapariga era mesmo pesadona! E a cabeça, porque apanhei uma bebedeira de caixão à cova. As gordas que me desculpem.

DIÁRIO DE MARTA
8.08.2025
Rejuvenesço! Posso dizer que é primavera, embora chova lá fora. Posso dizer que um sol me ilumina, embora seja lua cheia. Há quantos anos não sentia este fervor adolescente, a paixão não conhece idades. Quando ela nos alcança nada se repete, tudo equivale à primeira vez. Bem, por vezes até sucede que sentimos orgasmos que não conhecíamos. O Nuno é encantador, no sentido literal da palavra: obriga-me a cantar. Na sua companhia desato a palrar como uma criança. Não me surpreende com presentes caros, oferece-me objectos inúteis regateados na feira da Ladra, que me fazem sorrir e humedecer os olhos. Estes olhos que já choraram tanto. Estes olhos que somente viam negrume e desgosto.
DIÁRIO DO PROFESSOR RAMOS
6.08.
O medo da morte é a resposta defensiva do meu corpo, corpo animal, corpo água, a parte dele que é a mente, imagina e converte a emoção do medo num pensamento, obscuro, primitivo, irracional, empenho-me no trabalho, diversifico as actividades, arranco com as mãos nuas as ervas daninhas do meu quintal, arranho a terra, e não paro de pensar que a terra comerá os meus ossos, corpo-terra, a finitude, meu horizonte, as insuportáveis dores que hão-de chegar, num dia, numa noite, que ninguém prevê, o médico ainda não se mostra preocupado, porque é meu amigo? Eu sim, a morte dos outros é sempre a morte dos outros, a nossa é infinitamente mais consciente.
DIÁRIO DE MARTA
16.08.
Faz do meu corpo o que quer. Eu sou sua, sou objecto e sujeito. Desperta-me as sensações mais adormecidas, ignoradas, regresso aos primórdios da humanidade, solto-me sem freio, sem vergonha e sem remorso, o meu corpo sofrido é agora taça por onde ele bebe. Tão jovem e tão hábil…Sobre quantas já exerceu essa antiquíssima medicina? Com quantas aprendeu? Até quando, Nuno, até quando?
Fazes-me esquecer o tumulto das ruas, violência gratuita que conduz às urgências centos de cidadãos, tudo parece perder o sentido, a permanência, o amanhã agora é sempre uma incógnita alegre. Ou quase. Não me meto nas políticas, o tempo no hospital ocupa-me a atenção, nem sequer leio os jornais, pouco consulto o computador, excepto o correio. Mas tu, macho habilidoso, és todo o meu interesse quando saio do serviço…E como sabes seduzir-me! O teu corpo é tão bonito! Musculado sem ser em demasia, másculo. Não deixo que me tire fotografias com o telemóvel. Nua, não. Não o conheço como pessoa. Conheço-o como corpo, como um falo firme que me penetra e me deixa em chamas. Somente isso. E era isso mesmo que eu necessitava. Afastar a dor com um membro firme dentro de mim.Macho sim, dono não.
DIÁRIO DO PROFESSOR
16.08
Não durmo, chamo o sono e ele não vem, deixa-me de olhos abertos na solidão silenciosa de quatro paredes, Quando chegará a notícia? Exames e mais exames, a ansiedade corrói os minutos e as horas, ninguém me acode, ninguém sabe porque a ninguém conto, percorro a pé todos os caminhos do meu lugar, o cérebro esforça-se por instilar coragem ao corpo, mas o corpo é a mente, não são duas forças opostas, é um único organismo dividido, se eu morrer, quando eu morrer, nem uma ruga na pele do mundo, nada verá perturbado o seu curso, nada, não verei o curso da Revolução, não saberei se esta revolta social que abala os alicerces da sociedade se transformará em revolução, e se esta triunfará sobre a reacção que já se organiza, nasci sob o fascismo, morrerei com o triunfo do socialismo? O mais certo são sete palmos de terra, um punhado de moléculas e átomos que se dispersarão sem memórias. Espírito nenhum.
A espuma das palavras
A babugem do mar
Restos, ruínas, pegadas,
O vento nas dunas
as vozes caladas.


DIÁRIO DE MARTA
20.08
Há tanto tempo que não passeava! Não o fazia antes da morte da Gisela, por falta de tempo, de oportunidade, o serviço no hospital e a educação da minha filha ocupavam-me sem folgas, dizendo melhor: folguedos; não o fiz depois da sua morte, este ano e meio que já passou. Faço-o agora, com o Nuno, ele gosta de passear e eu necessito de me distrair das dores que trato no hospital e da dor que me persegue, agora mais calada e contida. O Nuno é jovem, o que quer é borga, boémia, eu sei e aceito, alinho e gosto. Conversas ligeiras e um pouco fúteis que me instalam no presente. Deambular pelos Centros Comerciais que antes detestava e que hoje me fazem sentir comum, quero ser comum e vulgar e anónima. Olhar para as montras, entrar nas lojas, ver, apalpar os tecidos e não comprar! Precisamente o que não fazia parte do meu universo...Compro roupas para mim e para ele, ofereço-lhas, visto-o, sem reservas. Eu sei. Pressinto que esta relação é a prazo, um dia destes vai terminar e da pior maneira, mas construo uma cúpula de vidro à minha volta, protectora, transparente, uma doce e suave ilusão. Passeamos, comemos aqui e acolá onde nos apetece, pernoitamos em hotéis e pensões, desde a costa vicentina à Estremadura. Esta semana percorremos São Martinho do Porto, de que tanto gosto, fotografamos-nos defronte da bonita baía, dos barquitos em repouso, hospedámos-nos numa pensão acolhedora ("Estrela"?), fizemos amor entre brejeirices e fantasias. Em Torres Vedras subimos ao Varatojo, mostrei-lhe o convento de Santo António, que data de 1470, aí soube que nele se recolheram D. João II e D. Leonor, depois da morte do filho, com toda a certeza para sofrerem e fazerem o luto, como os compreendo! Eu que ainda não encerrei o luto pela Gisela…Subimos a seguir a outra colina ao Forte de S. Vicente, e imaginámos (talvez somente eu tenha imaginado, que sabe o Nuno disso?) a batalha fratricida e sangrenta entre os cabralistas e os setembristas em 1846, de que ouvi falar numa palestra organizada pela Câmara ou coisa assim. Descemos, cruzámos a estrada nacional, seguimos por estradas municipais e visitámos os vestígios do castro do Zambujal, do período calcolítico, mais de quatro mil anos nos contemplam! Aquelas pedras robustas que guardavam a vida quotidiana de uma povoação de artesãos primitivos. Tomámos depois a estrada para Santa Cruz, o oceano, as praias tão arenosas e tão brancas, descalçámos-nos a rir como petizes e atravessámos o arco do penedo do Guincho, as gaivotas em voo rasante aos gritos na sua faina interminável. Que belas são estas praias! Como é agradável calcorreá-las com os pés nus, sentir a viscosidade das algas verdes e espumosas! Regressámos pelas Termas do Vimeiro, percorrendo vagarosamente a estrada que bordeja o rio Alcabrichel.
Uma única mancha nestes passeios, nestas festas de amor: os constantes sms que o Nuno recebe e não comenta comigo, os telefonemas que ele não atende, que finge não ouvir. Pergunto-lhe e ele responde com palavras evasivas: é a minha mãe que não me larga! Diz ele, porém não acredito. Esse algo escondido da vida dele ensombra as horas em que estamos juntos, ensombra as noites em que não estamos juntos. Quem será? O ciúme é um veneno que se toma na dose que a paixão exigir. Felizes dos que não têm ciúmes. O ciúme é um medo. E em alguns uma incontrolável vontade de agressão, ou, pelo menos, de vigiar. Lá se vai a liberdade! Não há nada pior que a vontade de poder! Poder para aprisionar. Apropriação. Nós, as mulheres também temos violentos ciúmes, contudo fomos sempre escravas, servas, propriedade. Eu não sinto vontade de matar ninguém; sinto vontade de ser respeitada. De não ser manipulada, utilizada como uma coisa que se usa e se deita fora. Isso não!
 Se nos decidimos por uma relação ocasional, receamos o prazo que ela tem de validade. Se, pelo contrário, queremos uma relação duradoura, tememos a traição. Eu quero com ele uma relação a prazo. A prazo e sendo eu a terminá-la. Com fastio.
DIÁRIO DO PROFESSOR
20.08.
Já as roseiras ganham folhas no meu quintal, emergem os lírios dos tubérculos, a salsa reverdece jovial, as alfaces repolhudas tentam os coelhos bravos, as camélias enlouquecem em súbitas labaredas... piso a terra e sinto-me novo, setenta anos de história que o verão rejuvenesce, acaricio esta e aquela folha de couve, sossego este e aquele caule de açucenas, pressinto-lhe a seiva... os dias solarengos espantam a humidade nos ossos, fiz as análises de rotina, o que vier a ser é o que será, tive dias em que me senti morto, tive outros em que me senti vivo, chorava com facilidade quando era petiz, desaprendi o choro, chorei por ti quando partiste, chorei por mim porque toda a partida é injusta, para um ou para o outro, sempre injusta, chega o ciúme, abandona-nos o juízo, ontem recordei as minhas primeiras férias ao pé do mar, uma colónia de crianças, um tostão semanal, dava para um gelado, apenas um, um cone ou um barquito de massa com o creme gelado por cima, delicioso, surpreende que algumas lembranças fiquem claras e nítidas para sempre, outras não, desvanecem-se, nem segredos são, apagaram-se por qualquer razão obscura, o meu primeiro beijo, ambos da mesma idade, sete anitos, a exploração dos corpos, tu tens uma coisa que eu não tenho, no jardim largo de uma casa apalaçada, somente esse instante permanece, de nada mais me lembro desse ano, minto! Vou comprar o pão a pedido de minha mãe, na estrada um carro da polícia, daqueles antigos, alguns homens a assistir nos passeios, dois polícias e um homem vestido com um fato completo escuro, no meio da roda um indivíduo algemado, riscam uns traços a giz no asfalto, oiço conversas dos mirones, aquele homem matou outro, esfaqueou-o por ciúme, fiquei com certeza fortemente emocionado, sete anos de idade, um homem matou outro, como é possível? Pura ingenuidade! o Mal é ainda desconhecido, naquela idade faz-se a pergunta capital: porque motivo se matam os homens uns aos outros? Contavam-nos histórias para crianças de arrepiar, bruxas horríveis, madrastas cruéis, metíamos sustos uns aos outros com visões de fantasmas e mortos vivos, recusávamos passar ao pé de cemitérios, porém aquela história de um homicídio autêntico, com o assassino ali ao pé, impressionou-me, até hoje. O que é o Mal? O filósofo Tomás Hobbes afirmou que no estado de natureza somos egoístas e maus, o homem é o lobo do homem, somente através de um contrato comum decidimos alienar essa liberdade má em favor de regras, a civilização domestica, no sentido literal, dá-nos um lar, uma família, uma propriedade individual, um soberano absoluto que nos protege. Jean- Jacques Rousseau, cem anos mais tarde, recusará esta tese: todo o homem nasce livre e igual em direitos, o selvagem é (ou fora nos inícios) inocente e bom, não é egoísta mas cooperativo, compassivo e solidário, é a civilização que o perverte, corrompe, transforma-se em hipócrita, astuto, egoísta, cúpido e vaidoso, adquire o amor-próprio, transforma-o em orgulho e o orgulho em crueldade e direito à posse. Em Santo Agostinho  é toda uma teologia do pecado. O pecado da ciência ou do amor sem pecado? Prefiro Baruch Espinoza: não existe o Mal, existem coisas boas e coisas más, encontros fortes e encontros fracos, paixões que aumentam ou diminuem a nossa potencia de ser.
DIÁRIO DO PROFESSOR
29.08.
Nem tudo o que vemos, ouvimos, é objetivamente assim, a espécie humana veio a confiar mais nos sentidos quando os usou em coordenação com as mãos. O trabalho, a produção de meios com a projeção dos fins.E é isto mesmo que repetimos na infância. Os sentidos erram, as emoções erram, mas os raciocínios também. São necessários métodos, e o engenho humano esteve nisso. As palavras não expressam sempre a realidade objetiva, mas foram criadas para isso mesmo, para avisarem de perigos ou de benefícios. De modo que não existiriam ciências sem uma correta observação empírica, e sem as práticas sociais (nem outra coisa podiam ser!). As partículas da matéria mudam de posição quando as observamos, mas existem apesar disso e avançamos no conhecimento das suas propriedades fundamentais apesar das suas infinitas correlações.  Sem a prática e sem o corpo emocional, a atividade intelectual seria pobre e lerda. Não possuiríamos sequer uma linguagem articulada. Os povos antigos detinham e os povos ditos “primitivos”ainda possuem conhecimentos empíricos que nos deixam boquiabertos, uns simples ignorantes ao seu lado : se enterrar estas sementes e lhes der o alimento adequado, muito provavelmente nascerão plantas... A aspiração a uma linguagem inteiramente lógica, composta por regras tais que possibilitariam diálogos sempre racionais, e consensos, uma linguagem universal transparente para ambos os interlocutores como água pura, é uma utopia metafísica.Ninguém mata a sede com água pura. As operações da lógica da não-contradição, os princípios geométricos e os axiomas, são-nos apresentados como os enunciados mais verdadeiros que o homem conseguiu, a proeza das proezas do intelecto; contudo, quantos enunciados abstratos são vazios e tautológicos? O conceito de Ser, por exemplo, é um balde vazio que podemos encher com o que quisermos. Até com os maiores disparates. Apenas quando as coisas vão adquirindo e mostrando as suas propriedades, apenas quando nós outrora as fomos manipulando e registando na memória,foi quando as coisas reais se tornaram existentes. Uma montanha não era criação da mente obscura do sapiens, no entanto tornou-se existente quando a observou como obstáculo a vencer ou como fonte de vida. Não a envolveu com o véu da ignorância como se diz, mas com o véu da veneração e do respeito.A civilização industrial capitalista assenta na falta de respeito, assenta na utilidade máxima e no lucro cumulativo; o planeta, a Vida, a humanidade do homem ficaram definitivamente condenados.É esse o Grande pecado original, o próximo Fim do Mundo, mas sem Julgamento Final.

  (Vivi dezenas de anos a proferir palavras. A ensinar palavras. Quantas delas se revelaram ocas quando as novas descobertas as demoliram? Quantas delas eu próprio não sabia na altura que eram falsas? Chegavam de quando em vez novas teorias, novos conceitos e não foram poucos aqueles que continuavam tranquilamente nas escolas a ensinar as antigas conceções. Modelos que explicavam o funcionamento do cérebro e que faliram, modelos que explicavam a inteligência e que caíram em desuso,buscas por partículas elementares a sucederem-se, e, subitamente, uma misteriosa energia negra que enche o universo que virou tudo do avesso! Vivi anos a ensinar e a desaprender.).
Estou crente que algumas teorias sobre o universo e a vida são antropocêntricas. Todas as religiões (e os mitos ) são antropocêntricas. Muitas teorias consideradas científicas foram antropocêntricas.O chamado BigBang por exemplo, parece-me curiosamente antropocêntrico e religioso nas teorias de alguns físicos de renome...O grande mérito de Charles Darwin foi erradicar as conceções antropocêntricas sobre a Vida e o próprio antropos, isto é o homem; o mérito maior de Einstein, dar-nos uma universo que não precisa de antropocentrismos para nada; e o mérito de Marx foi do mesmo alcance e do mesmo efeito.
A tendência para centrar está sempre presente: egocentrar, eurocentrar, etc., etc. No fundo, é sempre a vontade de ser único, singular, superior...
Na realidade somos, nós os humanos, pouco mais que nada. Somos matéria-energia, ondas-partículas.Uma simples respiração (pneuma) como diziam os gregos antigos.E reside aí o grande ESPANTO: a capacidade da matéria (energia com massa ou sem ela,”escura”ou luminosa, os quarks)pensar-se a si mesma!A melhor teoria filosófica foi ou será aquela que demonstre os porquê e os como deste epopeia. A mais grandiosa das epopeias. 



DIÁRIO DE MARTA
6.09.

Eu pressentia que alguém se interpunha entre nós! O Nuno é afinal um playboy com algum talento para as artes. Por mais astucioso que consiga ser, não engana sempre, a paixão é cegueira, mas não é estupidez, pelo contrário aguça os sistemas de alarme, espicaça a curiosidade, orienta a atenção para os mínimos pormenores. Os seus olhares distraídos, as mensagens que recebe e não explica, os telefonemas que faço e que ele não atende (as desculpas artificiosas que depois ele dá), os atrasos frequentes aos encontros, uns aromas estranhos nas roupas e na pele, tão estranhos como perfumes femininos que bem conheço…O Nuno atraiçoa-me. Com quem ainda não descobri. Tudo começou com uma ligeira desconfiança, hoje é uma certeza. Confrontei-o, não se retratou. Explicações evasivas. O ciúme insinua-se como um tóxico, não permitirei que me domine, não permitirei que me faça regredir ao negro e pesado luto donde talvez não haja saído ainda. Darei a volta por cima. Ter um namorado, ao fim de tanto tempo de solidão e desleixo por mim mesma, serviu-me para alguma coisa. Sim. Rejuvenesceu-me. Deu-me alento e amor-próprio. Voltei a sentir-me mulher. Atraiçoa-me mas não alimento vinganças. Talvez não devesse sequer importar-me em saber quem é a outra, mas não resisto a decifrar o enigma. Mais nova, da minha idade? Provavelmente mais nova, provavelmente uma antiga namorada, provavelmente alguém que não saiba que também é atraiçoada. O erro foi meu, mas não me arrependo. Volto a ficar sozinha. Não respondo aos seus telefonemas. Não o quero ver. Não me quero sujeitar à humilhação de acreditar de novo numa mentira. Necessito de sair para fora de mim, de distrair. Não é de desabafar que preciso, não contarei a ninguém. Todo o mundo anda a atraiçoar todo o mundo. Não vale a pena narrar uma traição a quem com certeza também foi atraiçoado. Corta-se a corrente e silencia-se. A bem dizer não o amei. Apaixonei-me. Uma mulher que perdeu uma filha há pouco mais de um ano, que odeia o ex-marido, não pode voltar a amar tão depressa e tão facilmente.
Ou estou apenas a enganar-me a mim própria? A racionalizar? Sinto ainda o cheiro de macho no meu corpo, as suas coxas viris a abrirem caminho entre as minhas, as suas erecções rápidas quando a minha mão descia e acariciava...Porque tento enganar-me se na verdade o meu corpo a todo o instante se recorda?

DIÁRIO DO PROFESSOR
5.10
Fenece o verão devagarinho, o céu não canta louvores ao Senhor, as andorinhas pressentem que os dias da sua viagem de emigrantes eternos se aproximam, sempre os mesmos casais, sempre os mesmos ninhos, perpétua repetição da natureza, quantos enigmas no instinto dos animais, buscamos enigmas nas palavras quando há outros à frente dos nossos olhos, não os apreciamos, o que dizemos captura-nos, eu disse “Chegou a primavera!”, o nome é um signo convencional, outras línguas outros signos, porém o que observo é idêntico, ainda que a paisagem seja diferente, o ciclo repete-se, sejam embora diferentes os significados o sentido é similar, as roseiras ganham folhas, os botões fechados, adormecidos, incham grávidos da flor que desponta, a morte do botão é a vida da flor, o processo é interminável, das sementes que a flor morta abandonou brotará a mesma espécie, é a lógica da vida, uma lógica objectiva que rege os processos naturais, quer eles sejam completamente diferentes ou não, a lógica que rege a linguagem sobre jaz a outras lógicas naturais, mais determinantes, imutáveis a não ser que o ambiente as destrua, extingam-se todas as rosas, permanecerão outras espécies de flores, porque razão a lógica da linguagem humana haverá de preencher toda a filosofia, as linguagens da natureza são tantas e várias…Reduzir-se-ão todas à mesma linguagem, à mesma lógica? «Deus ou a Natureza», Baruch Espinoza resumiu tudo numa fórmula. Soubesse ele que nem o Todo é eternamente o mesmo, que o que perpetuamente se repete não se repete sempre da mesma maneira, que o que é agora nem sempre o foi, a certa altura não existiu, a certa altura deixará de existir.
Escuto o Concerto para piano nº1, de Tchaikovsky,a quinta-essência do romantismo, e sinto e penso que a vida tem múltiplos significados e nenhum sentido. Os significados somos nós que emprestamos. Não vejo a Marta há meses. Porque atribuo tanto significado à Marta? Pelos seus olhos castanhos e húmidos, pela sua voz entrecortada de pausas e silêncios? Ela por fim desvendou-me o enigma da sua mal dissimulada tristeza, agora, numa mensagem no correio eletrónico. A morte de sua filha: que dor insuportável!Haverá outra dor mais dolorosa que essa?


DIÁRIO DE MARTA
10.09.
Ciúme. Que fazer deste ciúme? Moê-lo, remoê-lo? Obcecada com as lembranças? Remoer as lembranças não faço farinha nenhuma, não crio nada que não seja a dor, pura perda de tempo, puro masoquismo. Lembrar as suas carícias, as suas palavras, as fantasias, o seu corpo, adjectivá-lo? Para quê, porquê? Nem as suas palavras eram profundas, nem a superfície do seu corpo era singular, não foi o primeiro, não será o último. Não me seduziu, deixei-me seduzir, não me encontrou, fui eu que o achei, nem o perdi, nunca tinha sido meu.
Estou furiosa, e nem sei porquê. Não é ele tão importante assim que mereça destruir-me. Ninguém merece que se morra por amor, só nos filmes e esses só me comovem quando o objecto de amor morreu sem culpa formada. Como a minha filha Gisela. Era eu que devia estar naquele carro, era eu que devia ter morrido no acidente, não ela. Porém, continuo a viver, a resistir, há em mim uma força inconsciente que me obriga a sobreviver. Portanto,este mau bocado há-de passar. Esta dor é infinitamente menor do que a da perda da Gisela. Por ele não tive amor, tive paixão. Caprichosa, evasiva, fútil, passageira, física. Vai passar como o sarampo.Mas agora dói.O sacana enganou-me.Imagino-o a contar o feito aos amigalhaços. Aos companheiros das drogas. Porque eu sei perfeitamente que ela consumia. E o dinheiro que lhe dei, para o que foi senão para isso? Era para comprar o último álbum de fulano e sicrano, como dizia com aquele ar de artista marginal? Claro que não.  
Com quem me atraiçoava? Vou encontrar-me com a Clara. Ela conhece o Nuno, foi através dela que o conheci.
Não, não vou investigar o alvo da traição! Não vou investigar coisa nenhuma! Porquê chamar de traição uma relação que nunca foi de compromissos e deveres? O meu problema nem sequer é sexual, é mais antigo, mais fundo, é a auto-estima...E, por isso,vai pagar-mas!Os homens são todos uns covardes traidores!

DIÁRIO DE MARTA
18.09.

Não vale a pena. Desmascará-lo como? No fundo, é um gajo como os outros. Saltita de flor em flor como as abelhas. Um dom João de pacotilha. A receita do costume. Parece que agora há mais iguais a ele. Culpam as mulheres, cada vez mais provocantes, dizem; nós culpamos-los a eles. Sinal dos tempos. No fundo, são uns fracos. O futuro é da Mulher.Com maiúscula, emancipada. Não era o que eu escrevinhava nos panfletos escolares? E afinal de contas, não tenho sido uma mulher livre, independente, não submissa? Com o ex (recuso escrever o nome dele!) as tarefas domésticas eram divididas a meias. Enfim, mal divididas, porque era eu que devia ter ido buscar a Gisela ao ballet, quase já noite dentro...O gajo tinha estado com os colegas do escritório a enfiar uísques para celebrarem um contrato e foi buscá-la podre de bêbado.

DIÁRIO DE MARTA
19.09
Sinto saudades do professor Ramos. Firme na sua solidão voluntária. Ouvinte e conselheiro excepcional. Na verdade, não dá conselhos, nem profere lições. Narra as suas experiências de tal modo que as faz assemelhar-se às dos outros. Ou seja, é singular a experiência e, ao mesmo tempo,é universal.
Gosto dos seus olhos cheios de meiguice. Alguma vez fez mal a alguém? Provavelmente! Quem não fez? Mas sem maldade, seguramente sem maldade. Quantas mulheres amou? Muitas, certamente. Alguma mais do que as outras? Talvez, sucede com quase todos nós. Terá saudades minhas?
E o Carlos? Curioso: são dois os homens que ainda aprecio! Excepções.

Consegui saber quem foi o último namorado da Carla, o indivíduo que me suscitara uma estranha para mim curiosidade:da conversa concluí que namorara com o Carlos! Incrível!O meu antigo namorado do Liceu!Fiquei ainda mais curiosa: fiz-lhe contar tudo, quem era esse Carlos, como era, onde trabalhava. Aí não resisti: contei-lhe que conheci o Carlos, há vinte anos, na Escola Secundária. Ficou boquiaberta e depois comentou: este mundo é pequeno!
 E se nos encontrássemos os três? Desafiei-a. Que não, o Carlos suscitava nela sentimentos confusos, fortes, que não compreendia inteiramente. Fora o primeiro namorado com quem fez amor. Não, era melhor não. Ensinara-lhe muito do que ela quis ser e aprender. Já não o amava, não. A diferença de idades pesa que se farta, sobretudo quando nós, mulheres, temos só vinte anos...
Depois disto gostava muito de reconhecer esse Carlos que também foi o meu primeiro amor. Mudou ou é o mesmo?
Diário de Marta

  Durmo mal. Tenho insónias. Tenho pesadelos. Dei uma queda no passeio e esfolei um joelho. Tudo me dói. O meu corpo é uma carcaça ambulante. Gostaria de gostar de álcool. De me entornar. De tombar de borco no chão da cozinha, miserável, com pena de mim.Nas noites escuras e fundas como um labirinto vejo aranhas. Peludas, os olhos enormes e verdes fixados. Não tenho medo, tenho nojo. Tenho nojo das mãos que nos pesadelos me arrancam os mamilos. Tenho nojo das aranhas nas mãos peludas, os olhos verdes a troçarem de mim. Mato-as. Às mãos peludas. Mato-o ao verde cínico dos olhos.


DIÁRIO DO PROFESSOR
15.10
Lá fora a revolução continua, nas ruas, nas fábricas, nas praças, no parlamento, nas assembleias, nas rádios e televisões, são greves que se sucedem umas às outras, na administração pública, nos aeroportos, nos caminhos-de-ferro, nas fábricas grandes e nas oficinas pequenas, nos hipermercados, são protestos e reclamações, são gritos e cânticos de guerra e de união, são discursos inflamados que mobilizam multidões, são deputados que se agridem nas sessões, são polícias que nos agridem nos passeios, são bandeiras opostas que se agitam freneticamente, gritarias e insultos de partido a partido, de clube a clube, são lenços que se agitam das janelas e das varandas quando uma manifestação passa...Ontem exigia-se o «Socialismo já!”, hoje grita-se “Fora com os políticos, Viva a Nação!”.

Enfim,parece evidente que os de baixo já não suportam os de cima, porém é menos evidente que os de baixo queiram as mesmas coisas...poucos confiam nestes governos sempre iguais como os gémeos.Cada um que se forma da alternância acaba por fazer quase o mesmo que o precedente.Mas quem se opõe (primeiro dá-lhe o voto, depois opõe-se) posiciona-se em barricadas completamente diferentes. A desconfiança é tão larga e funda que isto vai dar para o torto: se não for conduzida para mais democracia, é a democracia que vai perder-se. O poder estatal está muito enfraquecido. O Poder, esse supremo alvo de todas as revoluções.Vai o Estado reagir com a repressão? Achas para a fogueira...
Eu sinto-me cada vez mais doente. A revolução dá-me forças, o corpo tira-mas. Irei morrer sem ver o seu desfecho?
A vida é uma longa aprendizagem para a morte, disse alguém. Não o aprovo. Não quero. O sábio pensa mais na vida do que na morte, escreveu o meu bem amado Baruch Espinoza.

Tive várias mortes na minha vida. Quando esta vier, eu já cá não estou. O modo do Ser que ainda não é, está na potência daquilo que é. É esse ainda-não que é verdadeiramente a potência da vida nova. O admirável está no Novo, nessa tendência que percorre e faz procriar todas as formas da mudança e da diferença. Mas o que é o Novo? Um salto qualitativo. Um modo completamente novo de ser, de pensar, de sentir...Venha a grande revolução que almejo. Venham os Cravos de novo. E que eu depois, e só depois, desfaleça.
Entretanto, para a ajudar a chegar depressa, andei a espalhar o Manifesto. À noite vejo tipos estranhos a rondarem-me a casa. Os cães já ladram. Há grupos para-militares a espancarem sindicalistas. A velha tática de instalar o terror para esmagar no ovo a revolução. Não tenho medo. Só se morre uma vez.Se resisti quando dava valor à vida, porque não hei de resistir agora? 

DIÁRIO DE CARLOS
15.10.
Projectos. O projecto da ponte, o projecto do Centro de Cultura. A ponte já quase está erguida, menina dos meus olhos. O segundo projecto está quase terminado. Não sou um espírito analítico, ou vejo a coisa toda inteira duma só vez, ou recomeço. Não me serve de nada caminhar por etapas, a pensar em cada uma por sua vez. Ou emerge o todo, como a Minerva da coxa do pai, ou meto outras coisas de permeio. O Centro de Cultura brotou da minha cabeça como a deusa. Gostei. Se os outros não gostarem, paciência. Passei metade da vida a construir casas ao gosto do freguês. Mercadoria. Vendo-me por um salário, que até não é mau de todo mas poderia ser maior, elaboro o projeto que a firma e o freguês encomendam ao gabinete que pertence ao Vasconcelos, submeti-me sempre ao interesse de ambos. Produzi, não criei. Vendi-me, não sou livre. Quinze anos de rotinas. A ouvir o Vasconcelos «Faz assim!». A ouvir o freguês «Quero assado!». O prestígio que granjeei, qualquer que seja o mérito, é uma treta: foi muito maior o desprazer em produzir do que o prazer. Somente a ponte que projectei e vejo a erguer-se me apaixonou. As paixões nunca foram o meu forte e, por isso, nunca foram a minha fraqueza. A minha vida foi um sucedâneo  de acontecimentos sem significado. Nem profundo, nem transcendente. Elos de uma cadeia de factos: chega uma encomenda, é uma oportunidade – mais um encargo que oportunidade – e cumpro (raramente dentro dos prazos). A pequena ponte, modesta na sua dimensão, sem a grandiosidade das pontes que atravessam os grandes rios, e ao contrário das dezenas de moradias que desenhei, mobilizou e despertou as energias mais adormecidas que eu nem acreditava que possuísse.
Ambiciono fazer do projeto do Centro de Cultura uma obra igual ou maior. Imagino-o como um polo atrator, uma fonte de dinamismo, de convívio comunitário e criador, uma escola de aprendizagens várias, que desenvolverão os gostos, o carácter, a personalidade de inumeráveis crianças e jovens. Se ainda estiver vivo quero vê-las entrar apressadas e a saírem felizes. É o meu contributo cívico. Nunca fiz nada que tal merecesse. Nunca pertenci a um partido, nunca ingressei em movimento algum, nunca dei um pataco a nenhuma causa, nunca chorei uma lágrima de compaixão. Tudo me era indiferente. Jamais seduzi uma mulher com as artimanhas do costume, sempre achei uma perda de tempo, deixei-me seduzir, sim, e apenas quando quis (ou quando o sexo me ordenava). Foram-se todas embora, deixá-las ir. A bem dizer nem sequer amei a mulher com quem estive casado dez anos. Gostei dela, é tudo. Tive amantes ocasionais, raparigas, mulheres casadas, nunca lhes dediquei versos de amor. Quando ela, a falecida, enfim, a Helena!, passou a imitar-me, achei justo, ficávamos quites. Se ela o fez por vingança não me apetece pensar nisso. Nunca tivemos filhos, não houve dramas. O maior drama é sempre para os filhos,ou por causa deles, acho eu. Sobre isso nada sei.Nunca tive um bebé ao colo.
Ganhei bom dinheiro uma vez por outra, gastei-o como quis. Todo. Chapa ganha, chapa gasta. Bares e restaurantes caros, bons hotéis para uma noite de sexo, nem frio nem ardente.
Subitamente despertei da letargia. Não foi a morte da mulher (ou foi?), talvez fosse o projecto da ponte, ou mais ainda o projecto do Centro de Cultura para crianças desprotegidas. Talvez. Ou talvez, antes disso, a relação com a Carla. Iniciar uma jovem mulher, quando eu já chegara aos quarenta e picos, fez-me sentir um Pigmalião. Como se desejasse ser melhor do que eu era efetivamente; e, ao tentá-lo, ficar e ser realmente melhor. Encontrei-me? Não sei. Encontrei através dela a minha juventude acabada. Capaz novamente de sonhar. De acreditar. A partida dela não foi um fracasso, um desastre, uma derrota. Foi o fim de um ciclo, o começo de outro.

DIÁRIO DE MARTA
20.09.
Sei onde poderia contactar com o Carlos, a Carla informou-me, ela esteve a prestar um trabalho ocasional numa firma de arquitetos; foi aí que o conheceu. Não me sinto ainda capaz de o procurar. Um destes dias em que esteja cheia de energia, optimismo, coragem. Aliás, se ele estivesse muito interessado já me teria encontrado no hospital onde trabalho, bastaria telefonar para lá a perguntar por mim. Bem bom seria, ajudar-me-ia a esquecer o Nuno, o apelo físico ainda é muito forte, mais dura, porém, foi o embuste traiçoeiro. Adiante! Vendo pela positiva: o tipo ajudou-me a renascer. Foi, afinal, bem vistas as coisas, a missão dele. É verdade que fiquei com a auto-estima fortemente abalada.
Gosto pouco de ser objeto manipulável. Contudo, o tipo parecia sincero quando fazia amor comigo! E levou-me a viajar, a conhecer locais que eu dificilmente iria visitar sozinha, embora tivesse sido eu a escolhê-los. O tipo não era burro nenhum, é verdade.  Portanto, o balanço não foi completamente negativo, convenhamos...O gajo gozou-me, porém eu gozei também. Ponto.

DIÁRIO DE MARTA
15.10.
Fiz ontem uma visita ao professor Ramos. Encontrei-o adoentado, enfraquecido. Evitou propositadamente explicar-me o que se passava com saúde dele; apesar disso, pôs-me tão à vontade que acabei por confessar-lhe o fracasso da minha relação com o Nuno, que ele, evidentemente, não conhece. Não me deu conselhos como é costume nos idosos; narrou, antes, alguns acontecimentos amorosos funestos da sua vida, com distanciamento e sem amarguras. Factos, são factos, rematou, não vale a pena chorar sobre o leite derramado, há sempre relações que se tentam reatar, mas a regra geral é que quando chegam ao fim não há nada a fazer. É necessário conservar a lucidez suficiente para nos apercebermos de que a coisa chegou ao seu termo sem remédio. A tentação comum é substituir um parceiro por outro, com excepção daqueles que passam o resto da vida a bater com a cabeça nas paredes. Conservar a cabeça para entender a tempo, antes de cometer asneiras, que a oportunidade passou, que a experiência findou, que a luta pela reconquista não vale sequer o esforço, ou a dita cuja pessoa não vale esforço nenhum. Depois, falou-me sobre o que se chama de "idealismo" na filosofia, ou seja: como é que se distingue uma pessoa “idealista” no ponto de vista moral, de um filósofo, ou de uma corrente, idealista. Acho que sou “materialista”, espontaneamente quero dizer. "Materialista" no trabalho de tentar salvar pessoas, de salvar mesmo, sem idealismos não científicos, com a prática, o conhecimento, as técnicas. Contudo, necessito de uma fé religiosa. Necessito sem contradição que me aflija. Sinto e por isso necessito.
(Os avanços inexoráveis da velhice que observo nele, obrigam-me a pensar que também eu já não sou nova. A juventude passou irremediavelmente. Que loucura me fez envolver numa relação com um homem que quase podia ser meu filho? Enquanto o professor falava eu ia pensando em como ele, este sim, daria uma boa companhia, fosse ele menos idoso. Assim eu o houvesse procurado uns anos atrás...vinte anos eu e ele provavelmente com cinquenta ou sessenta...
DIÁRIO DE CARLOS
20.10.
O meu projecto para o Centro de Cultura foi aprovado pelo Governo Regional do Oeste (a Câmara Municipal preferiu que fosse ele a assumir os encargos). Não ser, assim, propriedade municipal, mas regional. Obrigou-me, tal transferência, a algumas alterações, será maior para albergar maior número de crianças e de modalidades. Ficará implantado num vasto espaço público, um espelho de água, arvoredo, canteiros, bancos para os idosos.Falam já que vão atribuir-me um prémio de arquitetura que os governos regionais inventaram para melhorar a porcaria do casario que temos pelo país fora.  
O contrato é puramente verbal, dada a situação do país.
A convulsão social continua. Instalou-se a anarquia. Desejo ardentemente que ninguém se lembre, nesta confusão sem controlo, de praticar estragos na minha ponte. Por ora, verifico com prazer que ela não é utilizada somente para trânsito, também por pares de namorados que a escolhem para os seus idílios, e já observei até uma sessão de fotografia de um casamento, ali mesmo, por debaixo das abóbadas da ponte, todos felizes e contentes.
Vou visitar o professor Ramos. Desconfio que anda doente.
DIÁRIO DO  PROFESSOR
21.10.
Recebi as visitas da Marta e do Carlos. Decidi juntá-los em minha casa, por isso vou convidar ambos para o mesmo dia e hora, sem lhes comunicar a intenção. O meu mal-estar agrava-se. Não tenho ninguém a quem deixar as minhas parcas heranças. Talvez venham a ser eles os meus herdeiros.
Gostava de ter saúde para participar nas lutas sociais que se desenrolam. Às vezes meto-me no carro e vou assistir aos comícios improvisados ou espontâneos. Os camaradas que vêm às reuniões aqui em minha casa informaram que vai realizar-se um grande comício de unidade de todas as forças políticas de esquerda, nacional, em Lisboa. Terá de ser um sucesso na unidade conseguida e na mobilização. Há que barrar o passo aos fascistas!
Tudo começou com a crise que foi fazendo desmoronar a economia. Crise de uma sobre-produção que não se escoa, crise financeira dos bancos, crise em todas as áreas. Crise mundial que quebrou os pés de barro de países frágeis e dependentes como o nosso.
O que me surpreende é que não tendo sido a primeira crise profunda a que assisti (são recorrentes no capitalismo) esta desencadeou um estado de guerra civil. Surpreende-me como um descontentamento latente se tornou tumultuoso. Não há profetas em política realmente.
Por enquanto não vislumbro uma firme condução das lutas, parece, pelo contrário, uma absoluta anarquia. Contudo, as forças governamentais não parecem controlar a situação. Alguns poderosos já se pisgaram para o estrangeiro, o dinheiro deles esse já se pôs ao fresco, os ricaços dão à sola. Sinal de que isto está por pouco. Quanto mais dinheiro sacam do país, quanto menos investem, tanto mais sobem os juros dos credores internacionais. O país já não vale um pataco para os especuladores que governam a Europa (que é o que são na verdade os mercados financeiros). Os donos-disto-tudo são cada vez mais uma minoria, é mais fácil desalojá-los do poder, serão corridos para o mar a pontapé. Para pôr a funcionar uma fábrica os operários não necessitam para nada dos seus proprietários ociosos e dos administradores que só sabem dar ordens. Quando eles descobrirem esta verdade básica o mundo fica virado do avesso. Pois é no avesso que está a raiz e a solução.
Receio a reação brutal da direita. Da extrema-direita se for adequado separar pessoas de alguma direita que não aprova os terrorismos fascistas. Não aprova, mas não os combate...

 

Diário de Marta

 10.11

  Terceira visita da polícia.Queriam saber se eu conhecia o morto encontrado dentro do carro. Disseram o nome.Respondi que sim, que conheci o Nuno. Fui convidada a ir à esquadra para prestar depoimento.Que ia ser breve. Protestei, exagerando nos gestos e na proclamação dos meus direitos inalienáveis: mas porquê?Porque tenho de prestar declarações? Sou acusada de algum crime? Conheci-o sim, não neguei, mas já foi há muito tempo, o tempo passa depressa, sabem?

 

Diário de Marta

11.11

 Neguei que me tivesse encontrado com ele no dia do acidente mortal (vi nas notícias uma fotografia do carro esmagado nas rochas, em Sintra). Claro que não encontraram mensagens minhas no telemóvel dele: estava todo partido e sem cartão de memória. Pois é, disseram eles, com ar muito acusador, é que o cadáver, na autópsia, continha uma quantidade de coca suficiente para matar um cavalo...Ok, e então? Toda a gente sabia que ele snifava. Mas a senhora assistiu, participou? Claro que não participei, mas, sim, vi-o várias vezes fazer isso, e não foram poucas as vezes que ele me convidou...Nós não queremos de modo nenhum meter o nariz nas relações amorosas, aliás a senhora é adulta e infelizmente, viúva...Estamos a acusá-la? Não, de modo algum!

   Pois. Não encontraram nada que me envolvesse.Não havia sequer, percebi perfeitamente, indícios de crime. O que eles queriam saber é se eu, ou outra pessoa das relações do morto, podiam fornecer uma explicação para a hipótese de suicídio.

 Cá mas fazem, cá mas pagam. E mais não escrevo.Ainda hei de escrever uma página deste diário para ser lida apenas depois da minha morte. Com poucas retóricas porei a claro alguns atos da minha vida. Mas isto é vida?

 Diário de Marta

14.11

  Desta vez fiz-me acompanhar pelo advogado. Este rapaz, é da minha idade, é uma amizade que vem dos tempos da Escola Secundária. O Vasco é bom rapaz. Esteve apaixonado por mim na Escola Secundária mesmo sabendo que eu estava apaixonada pelo Carlos. Éramos todos amigos.

   Na Judiciária o par de interrogadores que me esperava era o mesmo:um baixote e magriço e o outro alto como uma trave. Não sei quanto ganham, mas as roupas que vestem são de baixa qualidade. Gente bem educada. "Sabe, Marta, se posso tratá-la assim senhora doutora, porque voltámos a solicitar a sua presença, que é um incómodo para si, eu sei, nós sabemos, porque a chamámos? Sim, porque a incomodamos? Pois, porque sempre foram duas mortes, duas pessoas das suas relações mais estreitas, atrevo-me a dizer: mais íntimas...Mas não! nada de acusações! Apenas a curiosidade.Enfim temos que fazer relatórios, entende não é? Encerrar o assunto, arquivar. Desculpe senhora doutora, mas a Marta, desculpe tratá-la assim, até tinha motivos para...como dizer?...desejar que eles morressem...Não, não!, nada de acusações! É apenas constatar que havia motivos...Não senhor doutor, a senhora doutora Marta del Río Pereira dos Santos (filha de mãe espanhola, não é?)não está a ser acusada de crime nenhum! Na realidade houve crime? Não sabemos. O ex-marido da senhora doutora, isto é, o cadáver, não apresentava, mesmo na autópsia, sinais de ter sido assassinado,além de uma enorme quantidade de álcool e sedativos brutalmente forte, tudo capaz de matar um cavalo!...O artista,o rapaz que namorou com a senhora doutora...Senhora doutora: disse namorar,não adiantei mais nada...foi encontrado desfeito, devo dizer desta maneira, nas rochas, debaixo do automóvel (que, aliás, nem era dele, mas do irmão!)...O que se encontrou no cadáver? Todo a gente já sabe , jornais e televisões noticiaram, cada um à sua maneira é claro!,uma morte por overdose? Como é que foi cair, ou deixar-se cair, lá baixo, nas rochas, se estava morto? Perdeu o controlo do automóvel completamente pedrado? Com aquele sono-desmaio que empurra o drogado para o estado de coma? Suicídio? Acidente? Homicídio?...Não, senhor doutor! nada de acusações! Apenas hipóteses...



Diário de Marta
15.11.
O que a vida nos reserva!
Reencontrei o Carlos nas piores circunstâncias! Ontem estive de serviço nas Urgências. Às dez horas da noite uma ambulância trouxe um indivíduo com diagnóstico reservado. Fora espancado. Não era o primeiro, as revoltas nas ruas, a violência entre grupos da extrema-direita e da extrema-esquerda, provocam afluência diária aos hospitais. Mas este indivíduo era especial. Não o reconheci imediatamente, trazia o rosto ensanguentado. Por fim, limpo e tratado, o Carlos estava ali! Incrível! Fora espancado por facínoras da extrema-direita, vários polícias assistiram, comentava-se no hospital, e não intervieram, o coitado apenas se passeava por um rua deserta, ou passava a caminho de algum bar, viu, conforme contou depois, uns cartazes que achou horríveis a apelar à morte dos comunistas, achou que aquilo já não era somente contra comunistas mas uma sentença de morte para todos os democratas e decidiu rasgar um desses cartazes, logo surgiram do nada uns delinquentes, cabeças rapadas, alguns com capuzes, que desataram a espancá-lo. Alguém assistiu da janela e ligou para o 112. Se não fosse a rapidez do INEM o pobre do Carlos entraria em coma. Chegaram a tempo. Recuperámo-lo muito bem. É saudável, rijo, resistiu perfeitamente. Escoriações múltiplas e duas costelas atingidas que lhe provocam dores, mas ficou sob a acção de sedativos. Pela manhã, pouco antes de eu terminar o meu turno, acordou, falei-lhe, reconheceu-me sem dificuldade, e verteu uma lágrima, comoveu-me, acabei a chorar com as minhas mãos sobre o seu rosto (uma enfermeira entrou, viu e saiu imediatamente com decoro). Ficámos os dois ali a olhar um para o outro como se uma vintena de anos não tivesse passado sobre as nossas feições. É um homem maduro ainda bonito, quase sem rugas, umas cãs a dar-lhe um toque de charme, aqueles olhos castanhos...Que bom! O Carlos!

DIÁRIO DE MARTA

17.11.

 

  O Carlos já teve alta, não chegou a estar dois dias internado. Ficou com baixa em casa. Com as costelas naquele estado ainda precisa de uma boa semana de repouso. Convidou-me a visitá-lo em casa. Mora em Lisboa mas conserva a mansão dos pais no concelho de Mafra. Vou lá amanhã que estou de folga.

DIÁRIO DE MARTA
21.11.
Lembrava-me perfeitamente da moradia que o Carlos herdara dos pais. Já não me lembrava do trajecto, isso não. Aliás, não tinha carta de condução, nem carro é claro, quando estive lá há mais de vinte anos. Ele tem aquilo tudo muito limpo (manda lá uma senhora tratar disso regularmente, ainda a mesma que era a empregada dos pais) e é uma casa muito confortável. Um casarão, ou quase, quatro quartos e uma sala que é um salão. A sala belíssima no seu travejamento de madeira de carvalho, uma lareira de conto de fadas, uma longa mesa de jantar onde brilhariam em tempos idos as pratas e os cristais. O quintal é que está menos cuidado, « tenho estado pouco virado para a agricultura de nabiças! Aliás, nabos é o que mais há!», disse a rir. Mas lá estão as árvores centenárias: plátanos majestosos e faias a marginar o caminho que desde o enorme portão nos conduz à casa.. Gostei muito, mas mesmo muito, de lá estar. De ver e ouvir o Carlos. Meu Deus! O rapaz que eu namorei na escola há tanto tempo! Contou-me da ponte que construiu sobre o rio, isto é, que desenhou, mostrou-me fotos dela, é um espanto! Vai ficar para a história, vai receber prémios com toda a certeza. Aliás, já foi homenageado e eu não soube de nada! Em que galáxia tenho andado?
Foi um azar dele ter sido espancado pelos arruaceiros, porque, disse, nunca fez política alguma excepto votar. Tinha vindo a Torres Vedras por qualquer motivo que não explicou, estava a passar ao pé de uns cartazes e deu-lhe vontade de arrancar aquele ódio nojento escarrapachado nas paredes. Receia que estas hordas de fascistas façam estragos à ponte só por causa do nome que ela tem: “Liberdade”.Bonito nome.
Quando me despedi dele, demos um abraço sentido (não tão apertado como eu queria, por causa das costelas dele). É curioso: o odor corporal dele veio-me à memória! Já tinha lido que cada um de nós tem um odor particular. Se isso já é incrível, mais o é a memória recordar o odor de alguém depois de tanto tempo. Impressionante!
Não posso vê-lo muitas vezes por causa do meu trabalho mas já combinámos visitar a escola onde estudámos juntos.

Diário de Marta

  Ao reconhecer no Carlos o bom rapaz que ele era, fez-me reconciliar com o sexo masculino.O que eu cometi com o ódio que me tem consumido? Que doença me ocupou o cérebro? É estranho o que se passa: não me lembro de períodos inteiros da minha vida nos últimos anos!Apenas a imagem dolorosa da Gisela na minha cabeça. Devo ter tratado e até salvado de morte certa muita gente no hospital com atos de mera rotina...Pesadelos, muitos pesadelos. Fantasmas a assombrar-me as noites.Interrogatórios da judiciária. Cadáveres.Há algo que me assusta em mim.Que fiz?

DIÁRIO DE CARLOS
30.11.
  Estive internado no hospital. Fui espancado quase até à morte por uns filhos da puta. Tinha ido a Torres Vedras com a intenção de descobrir o paradeiro da Marta. Na altura não fazia ideia onde é que ela trabalhava como médica: podia ser interna do hospital ou trabalhar exclusivamente numa das clínicas privadas. Tinha estacionado ali ao pé do cemitério, por volta das nove da noite e pus-me a andar a pé. Foi quando deparei com uns cartazes medonhos com cruzes gamadas com esta frase “Morte aos comunistas e a todos os que os apoiam!”, e não resisti, não sou de políticas, não pertenço a ninguém, mas aquilo pareceu-me demais, e pus-me a rasgá-los. Resultado da minha atitude estúpida: parou um carro junto a mim, saíram de lá uns quatro gajos e levei uma sova tremenda! Não me mataram por um triz: os donos de uma pastelaria que estavam a fechar a loja assistiram e deram uns berros salvadores. Depois, devem ter pegado em mim e levaram-me ao hospital que é ali felizmente muito perto, porém não me lembro de nada.
Aconteceram-me duas coisas extraordinárias: fui tratado pela Marta e fiquei com vontade de me meter na política!
Ou seja: reencontrei um amor perdido e uma raiva desconhecida. Vou chamar-lhe cólera a uma coisa e amor a outra.
 A Marta visitou-me na semana passada na moradia dos meus pais. Chegou com lá com facilidade disse ela. Que bonita que a Marta está! Uma pele linda, um rosto brilhante, um corpo atraente, um pouco mais forte, mais cheio, é claro, do que tinha nos seus dezassete, dezoito, anos. Notei-lhe nos olhos uma tristeza profunda por debaixo do sorriso largo que me ofereceu quando me viu. Chegou a rir comigo mas a tristeza parecia estar lá, por detrás da cortina. Ontem, ao telefone, contou-me a tragédia da sua vida, a morte horrível da sua filha, uma criança, que horror! Fiquei sem fala, não soube o que lhe dizer, é tão difícil encontrar palavras de consolo para uma tragédia assim...Talvez também por compaixão hoje sinto-me apaixonado! Sinto um grande desejo de ser carinhoso! Combinámos visitar a escola secundária onde estudámos. Sinto vontade de a levar a passear a todos os lugares que ela queira. Vou convidá-la a viajar até Florença, Veneza, sei lá! A chatice toda é que estamos a entrar no inverno e eu detesto o frio...mas podemos passear viajar para os trópicos! É isso, vou falar-lhe. É a companheira ideal para aturar as minhas impaciências e eu tentarei ser para ela uma companhia alegre. Vamos a ver se chegamos ao fim. Mas duvido. Ainda vamos passar um mau bocado, não sei mesmo quantos de nós sobreviverão. A Marta gosta mais de política, do conflito e do confronto, do que eu. Já na nossa juventude, era assim. Não tem inclinação nenhuma para ser domesticável. Até iremos dormir em camas separadas, digo eu! Em camas e em quartos! E se vierem filhos, então há de arranjar-se. Já estou a imaginar demais. Nesta visita não fizemos amor, não me atrevi, tínhamos tanto para conversar! Uma agenda com vinte anos! Contudo, fui-lhe apreciando o volume dos seios e das coxas, estão um pouco maiores que nos seus dezassete anos...

Diário de Marta

  Gosto do Carlos!Sinto que chegará de novo essa paixão

 

Diário de Carlos
2.12.
Tenho assistido a reuniões e assembleias políticas. Odeio os fascistas, nazis, racistas, toda essa cambada reacionária. A doutrina deles é o ódio sem disfarces à diferença, à revolução. Os seus gritos de “Morte aos comunistas!” abrange todos os democratas que se opõem à ditadura terrorista e significam um futuro tenebroso. Não se movimentam apenas nos feudos rurais da direita trauliteira e clerical, também assaltam as cidades, em algumas avenidas de Lisboa e do Porto é agora perigoso circular por causa dos meninos ricos com os seus carros topo de gama que nos injuriam e provocam. Em Cascais e na marginal, nem pensar! Cavalgam aquelas máquina como hunos histéricos. Os boatos substituíram as notícias e raros são os jornais e televisões que não alimentam o alarme e o medo.

As assembleias populares a que assisto são ruidosas, gente demasiada a querer falar, muito disparate no meio de coisas acertadas, contudo insuflam sinceridade na atmosfera. Respiramos sinceridade. Há mais conversas entre as pessoas, dão-se abraços (menos eu, que ainda me doem as costas!), e lá vou num grupo ruidoso petiscar e beber um copo depois de mais uma manifestação nas ruas. Sinto-me unido com todos, em comunhão. Nunca me sucedeu! Por ora é só a malta do bairro onde trabalho. Eu que dizia ignorar o que era o “povo”, descobri-o neste ruído de muitas vozes. Povo trabalhador, devo escrever, porque agora sei que a palavra povo somente se aplica aos trabalhadores das fábricas, das escolas, dos campos, do mar, das lojas, etc. Não aos patrões ricos. Frequentemente há alguém, homem ou mulher, que faz uma síntese das díspares (por vezes disparatadas) intervenções e propostas, admirável! Sínteses brilhantes feitas por homens e mulheres aparentemente vulgares, nunca catedráticos saídos dos seus casulos universitários. Fico espantado. Quanta gente de valor caminha por este mundo fora anonimamente! Começo a acreditar que existe nas gentes um potencial de esperança que aguarda apenas um acontecimento súbito para despertar. Esperança de quê? De mais justiça com certeza. É claro que cada um que ali discursa possui o seu interesse pessoal, a sua mágoa, o seu ressentimento, contudo o que une todos é o desprezo pelos ricaços que pagam aos desordeiros para não sujarem as mãos com sangue, pelos jornalistas que fazem descarada propaganda a favor de um golpe,sendo eles muito responsáveis pelo alarmismo e pela violência.
Fui eleito para uma comissão de uma associação popular revolucionária. A comissão de moradores (neste caso não moro aqui, mas não faz mal). Atribuíram-me tarefas de design dos cartazes e outros materiais. Aceitei porque confiaram em mim. Muitos deles conhecem a minha ponte e dizem que a adoram. E acharam muito bons os desenhos do Centro de Cultura que ando a planear.
O Centro de Cultura! Se a ponte chegou a ser uma utopia e, finalmente, uma utopia realizada, o Centro vai ficar como mera utopia. Vou sonhando.
DIÁRIO DE CARLOS
10. 12.
Assassinaram o professor Ramos! Que desgosto! Custa-me escrever! Nem quero acreditar! A notícia vem nos jornais, nas televisões, um grupo terrorista assaltou a moradia quando decorria uma reunião política,as primeiras investigações apontam que o professor não era o alvo preferencial, mas um alto dirigente do partido comunista que estava presente, na confusão gerada pela corajosa resistência ele tombou sob a metralha homicida.

  Recordo o que ele afirmou perentório há algum tempo passado : mais vale morrer de pé, que sobreviver de joelhos a esta besta fascista!

O funeral é amanhã. Já falei com a Marta. Mais uma comoção para a infeliz!
Juntei-me a uns amigos do professor para tratarmos do funeral. Depois trataremos da venda da casa, ou de cumprir algum testamento que ele haja redigido.

 Assim se encerra uma vida digna que soube transformar o egoísmo natural em altruísmo social e o medo em coragem. Não foi um ser divino nem transcendente, foi um cidadão que qualquer um pode ser. Não é necessário ser pobre, nem rico, operário, camponês ou artista. Basta querer.

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Diário de Carlos

1º de Maio, ano...

Foram espantosas as manifestações populares de alegria nas comemorações nacionais dos vinte anos da Grande Revolução Democrática e Socialista! De facto, só temos razões para comemorar estes anos de abundância e de liberdades, eliminados que foram os monopólios e as oligarquias! Eu que há vinte anos pouco ou nada ligava à política, tornei-me um participante ativo na aplicação das profundas melhorias sociais em todos os domínios, desde as creches e escolas gratuitas de todos os níveis para todos, desde as empresas públicas para o cumprimento da planificação central,que as empresas privadas têm também de obedecer, até à profusão das cooperativas e imaginativas formas de cooperação. Os seres humanos podem transformar-se para melhor. Nunca serão como os anjos -esses não possuem corpo-, nem as sociedades chegarão a alcançar a perfeição, é uma verdade ;contudo, observo como a cooperação e os interesses comuns modelam as pessoas. Não podemos ser todos felizes, ou sempre felizes, no entanto podemos gozar todos de uma vida boa. Existem por este mundo fora países e regiões onde isso não se alcançou ainda, bem pelo contrário, contradições e conflitos não acabaram e hão de continuar sabe-se lá até quando. Talvez a humanidade possa até ser dizimada por uma guerra nuclear, ou por um meteorito.A Terra continua a aquecer apesar de termos travado um aumento exponencial, casa arrombada, trancas na porta...

  A Marta, a minha Marta, deixou-me, com a sua morte, num vazio ao qual só resisto através da atividade cívica, pelos projetos públicos em que me envolvo.Mas estou a ficar velho, calmo como sempre, mas velho.

  Dei à minha existência um significado, um valor. A Marta nunca conseguiu encontrar para a sua sentido algum.Poderíamos ter conhecido uma verdadeira felicidade não fosse a sua perene melancolia. Era profundamente religiosa, sem jamais se vergar à condição de beata. Era crente mas sem intermediários.Afeiçoou-se a um padre muito idoso (ela viria a morrer antes dele!)e com certeza, ou calculo, confessava-se a ele.Talvez só esse homem soubesse o segredo que ela escondia de mim.Eu suspeitava, porém nunca vi prova alguma daquilo de muito grave que ela terá cometido. Morreu com um quase sorriso (assim me pareceu)nos lábios. Julgo saber decifrá-lo, porque mais ninguém a conheceu como eu próprio, o que fez, os seus ódios mortais e os seus amores.Ia juntar-se à filha.


FIM

Escrito entre 2010 e 2018